segunda-feira, 18 de julho de 2016

O monopólio dos transportes e a Revolução Industrial



Por Horacio Langlois

Sobre o papel preponderante na Revolução Industrial da construção de novas vias e estradas, grandes pontes, inovações técnicas, novos meios de locomoção, etc., a compreensão tanto de historiadores quanto de economistas é quase unânime: é praticamente inconcebível a sociedade capitalista moderna sem a “revolução” dos meios de transporte. O economista e historiador G. D. H. Cole escreveu que “o advento das ferrovias não apenas deu à indústria metalúrgica uma posição fundamental no sistema industrial, mas que revolucionou também a natureza dos processos de investimento e pavimentou o caminho para a expansão da propriedade via participação acionária à todas as empresas de grande porte”[1]. Cidades representativas do apogeu industrial como Birmingham ou Sheffield na Inglaterra “tiveram seus rápidos desenvolvimentos econômicos principalmente pelas ferrovias”; as grandes indústrias de fabricação de máquinas... em princípio, se apoiaram muito mais na demanda por locomotivas e equipamento ferroviários em geral do que no crescente uso de engrenagens para ser usada na indústria de transformação”[2].

Ao analisar o papel do estado no surgimento do capitalismo, Kevin Carson, em seu livro Studies in Mutualist Political Economy (Estudos na Economia Política Mutualista, tradução livre), observou que um dos monopólios que Benjamin Tucker tinha deixado passar era o monopólio dos transportes. Este monopólio tem uma importância central no desenvolvimento do capitalismo: sem o subsídio do estado sobre os custos internos de algumas empresas, o mais provável é que as grandes corporações do final do século XIX e início do XX não tivessem chegado a se formar.

A ferrovia foi a invenção fundamental por meio do qual se transformaram radicalmente as sociedades europeias. No início elas estavam limitadas pelo transporte de cargas em curtos trechos de estradas, muitas vezes estabelecidas pela mesma empresa – principalmente na mineração. As estradas privadas que traçavam os primeiros inovadores estavam ilhadas umas das outras e não tinham a intenção de se fazer chegar em cidades, províncias e até mesmo nações. A ampla ferrovia moderna, que atravessaria distâncias inimagináveis para a época, que ligaria mercados entre todos os rincões da nação, era inacessível para estes capitais limitados. A partir de 1840 o estado então surgiu como o principal promotor, socializando os enormes custo destes monstruosos investimentos afim de baratear os gastos de transporte das grandes lojas de departamento que começavam a surgir e para deslocar os pequenos comerciantes locais, baratear o traslado dos trabalhadores para as grandes cidades e centros industriais, esvaziando os pequenos bairros e localidades rurais, etc.

A revolução dos transportes seguiria dois cursos principais: um em que o estado era responsável de conceder terras e assegurar os mercados, limitado a controlar e subsidiar, que foi predominantemente na Inglaterra e França; e outro em que teve participação direta e praticamente iniciou uma rede estatal de serviços de transportes públicos com apoio estratégico de capitais privados, cujo exemplo paradigmático foi Bélgica e Alemanha.

Na Inglaterra o governo era responsável por facilitar concessões de terras públicas – em alguns casos expropriados de camponeses – para grandes capitais privados, que ofereceriam um serviço barato e com uma tarifa subsidiada monitorada pelas autoridades públicas. Desde 1842 os trilhos das estradas de ferro só podiam ser autorizados pelos inspetores do Ministério do Comércio. Na França, a rede privada de ferrovia, limitada em 1848, estava limitada pela especificação às condições estatais precisas. A partir do Segundo Império, o estado favoreceu diretamente as fusões de capitais e aproximou relações diretas com umas poucas grandes empresas que oferecessem garantias e solvência financeira.

Em 1842, na Bélgica, o estado assegurava a construção e operação de todas as linhas para as companhias privadas, cedendo o usufruto das estradas secundárias para capitais e engenheiros ingleses. Na Alemanha, August von der Heydt, desde o Ministério do Comércio da Prússia se dedicou entre os anos de 1848 e 1862 para estender paulatinamente o controle do estado sobre as ferrovias. De fato, a construção de estradas de ferro foi totalmente centralizada pelo governo prussiano. Por volta de 1857, praticamente a metade das companhias foram nacionalizadas ou sob o controle estatal. Sob o controle de Otto von Bismarck, o interesse sobre uma rede de ferrovias nacionalizada se fez explícita na medida que favorecia o traslado de tropas militares para a invasão imperial e para acabar com as greves de trabalhadores. Antes de 1850, no Império austríaco, o estado tentou empreender a construção de toda a rede de estrada de ferro, porém as dificuldades econômicas o obrigou a interromper as obras. Em 1854 o governo associou seu monopólio com o Crédit Mobilier de Paris, formando a Sociedade Austríaca de Ferrovia do Estado, que assumiu o controle das ferrovias assim como das fábricas de locomotivas. Em torno de 1863 houve uma febre de construção de ferrovias nas mãos de empresas privadas que se beneficiavam de uma garantia concedida pelo estado. Em 1873 veio a crise, e a maioria destas empresas tiveram que ser nacionalizadas. Por outro lado, tanto na Itália como na Espanha, a existência de ferrovias era muito pobre em 1850, e as poucas construções que foram feitas a partir desse ano foram devido a concessão de terras e estradas para capitais e engenheiros franceses[3].

A navegação marítima seguiu um curso similar. As inovações técnicas aceleraram o projeto de grandes barcos para o transporte de mercadorias e pessoas. Não obstante, eram tão custosas que as empresas tradicionais que se dedicaram a construção de barcos não podiam pagá-las. Segundo Palmade,

Estas transformações técnicas não demoraram em modificar os aspectos econômicos dos transportes marítimos. O custo de construção do navio aumentou em tais proporções que já não estava ao alcance do armador de outros tempos, ao qual foi substituído por poderosas empresas com capitais significantes fornecidos por grupos bancários. Muitas vezes gozavam de subsídios do estado e monopólio virtual para a exploração de suas linhas [4].

As obras necessárias para a criação de grandes portos também ocorreram próximas de associações de capital privado e estado, que se dedicaram à construção de docas, canais, etc. Mas os principais portos que recebiam esta atenção eram os que podiam se conectar com as novas vias férreas. Não surpreendente, a família Pereire, que se dedicava assiduamente à administração de ferrovias, teve participação também nestas companhias de navegação subsidiadas [5].

A verdade é que não existia, antes de todos os empreendimentos, uma demanda real para este tipo de transporte. O fato de que os capitais privados não tinham feito para eles mesmos é eloquente o bastante: os consumidores teriam que pagar enormes quantias para mantê-los. Somente através da socialização dos custos internos destas empresas graças ao estado e ao controle monopólico do mercado que se poderia assegurar algum tipo de benefício a cobrir o risco.

A necessidade destes serviços era sem sentido, já que a vida antes dos transportes era bem diferente. Existia, até início do século XIX na Europa continental, uma vida marcada pelo local, bairrista. As jornadas se faziam em sua maior parte à pé, muitas vezes o lugar de onde se vivia era o mesmo de onde se trabalhava. Predominava a produção artesanal, familiar e doméstica. Grande parte das atividades extra-laborais, como as igrejas ou as lojas para comprar suprimentos, se encontrava dentro do mesmo bairro. Claro, isto não era muito conveniente para as indústrias capitalistas emergentes que necessitavam do afluxo de grandes contingentes de trabalhadores para os centros urbanos. O sociólogo Renato Ortíz, analisando as origens do desenvolvimento da ideia de “mobilidade” como base fundamental do advento da modernidade, cita o informe de uma comissão municipal de Paris de 1828 sobre as supostas necessidades da “circulação”:

Há em cidades grandes como Paris uma imensa necessidade de transportes a preços baixos. Existe, entre todos os bairros, uma solidariedade estreita de relações de toda natureza. O regime de concorrência existente nas ruas não satisfaz este interesse porque serve alguns bairros e não a outros. Portanto, o melhor é constituir uma única companhia que, com menos gastos, produza um transporte barato e que, por unidade de direção, estabeleça a solidariedade de um serviço que se deve estender em todas as direções. [6]

Neste pequeno parágrafo as claras intenções da classe dominante estão contidos. Os centros urbanos precisam de maior afluxo de homens para trabalhar. Necessita, para eles, de um transporte de massa e a preços baixos que, de outra forma, o custo de atrair trabalhadores à cidade seria maior. Para tanto as autoridades públicas devem se encarregar por estabelecer um monopólio que socialize estes custos e permita o barateamento da mão-de-obra. E tudo isso disfarçado de uma suposta “necessidade” de estreitar laços de “solidariedade” entre os bairros parisiense.

Incluindo medidas de repressão e controle sobre os movimentos populares posteriores à implantação organizada do capitalismo, que foram fontes de negócio para uns poucos capitais concentrados dedicados aos transportes. Segundo conta Ortíz, ao analisar a obra do Barão Haussmann, urbanista francês encarregado de redesenhar a cidade de Paris, relata que:

Paris, desde a Revolução, a queda de Carlos X em 1830, os combatentes de 1848, havia sido cenário de violentos acontecimentos políticos. Havia uma razão geográfica para isso, as ruas estreitas permitiam a construção de barricadas, impedindo a ação da força policial. Haussmann tem clara consciência destas questões; sua reforma possui uma inequívoca dimensão política. 'A execução das diversas operações não exigiu mais do que cinco anos. Era o estripamento da Velha Paris, dos bairros dos motins, das barricadas. Com uma longa avenida central penetrando de um lado ao outro este labirinto impraticável, ladeado por comunicações transversais'. (Haussmann, 1979:54). […] Poderíamos somar outro elemento a este quadro. Os trabalhos de remodelação urbana são caros e envolvem múltiplos interesses. Isto requer uma associação entre a ação do estado e do capital privado, muitas vezes favorecendo a especulação. A construção de novos edifícios, às vezes bairros inteiros, atende, portanto, uma expectativa dos grandes grupos financeiros[7].

Novamente vemos as intenções da classe dominante disfarçadas de “necessidade pública” progressista. Até meados do século XIX, Paris era uma cidade de bairros abarrotados de construções irregulares, cruzada por ruas e estradas estreitas e serpenteantes, que concentrava e amontoava enormes contingentes de pessoas. Isto facilitava a resistência e as revoltas trabalhistas e, por isso, tornou-se necessário a construção de grandes bulevares e avenidas que permitisse a circulação e a passagem de novos transportes urbanos, enquanto dava ataque repentino e favorecia a repressão. Paralelamente, se criava uma fonte enorme de negócios mediante as expropriações e destruições de bairros antigos. O historiador Guy Palmade nota que “homens de negócio, verdadeiros 'promotores' se encarregavam da construção de novos bairros acumulando com eles grandes fortunas... Grupos financeiros especulavam o valor da terra e das perspectivas de expansão das cidades”[8].

Talvez por isso que, nas palavras de Carson, “não é assim que funcionam as coisas segundo o que os neoliberais gostam de denominar 'capitalismo de livre mercado'”. Porém o papel do estado na Revolução Industrial foi a norma e não a exceção. “Os custos das redes de transporte e de comunicações das receitas gerais, em vez de pôr impostos e taxas de utilização, permitiam as grandes empresas 'externalizarem seus custos' sobre o público e ocultar seus verdadeiros custos de operação”[9].

O resultado da criação de toda a rede moderna de transporte e comunicações teve três efeitos principais na economia capitalista nascente: (a) a criação de gigantescas empresas e fusões de capitais por parte do estado, ao qual dispõe de um monopólio legal e uma estrutura de custos subsidiada por todos os cidadãos, (b) a diminuição artificial nos custos de transporte de mercadorias para as grandes lojas de departamento em detrimento das pequenas lojas locais, e (c) o barateamento da mão-de-obra devido ao transporte de massa dos trabalhadores vindos das economias locais até os centros industriais e as cidades.

Os economistas ortodoxos se contentam em assumir que as ferrovias, as comunicações, etc. são atividades em que o surgimento de monopólios é um fato “natural”. O que nós podemos dizer é que aparentemente a maioria destes profissionais estão muito mal formados em história econômica.

Notas:
[1] G. D. H. Cole, Introducción a la historia económica, 1750-1950. Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1973 (p. 61).
[2] G. D. H. Cole, Ibid. (p. 63).
[3] Guy Palmade, La época de la burguesía. Madrid, Siglo XXI, 1972 (pp. 77-89).
[4] Guy Palmade, Ibid. (p. 92).
[5] Guy Palmade, Ibid. (p. 94).
[6] Renato Ortíz, Modernidad y espacio. Benjamin en París. Buenos Aires, Grupo Editorial Norma, 2000 (pp. 25-26).
[7] Renato Ortíz, Ibid. (pp. 29-30).
[8] Guy Palmade, Op. Cit. (p. 68).
[9] Kevin Carson, Studies in Political Economy Mutualist, 2004. Disponível em <http://www.mutualist.org/id47.html> (acessado em 02/05/2014). Texto original em inglês: “But that’s not the way things work under what the neoliberals like to call 'free market capitalism'. Spending on transportation and communications networks from general revenues, rather than from taxes and user fees, allows big business to 'externalize its costs' on the public, and conceal its true operating expenses”.

Traduzido do espanhol por Rodrigo Viana.
Publicado originalmente em Mutualismo.Org. Para ler o artigo original clique aqui.