segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O anarco-"capitalismo" é impossível



Por Anna Morgenstern

Muitos anarquistas de vários tipos tem feito a alegação de que os anarco-capitalistas não são realmente anarquistas porque o anarquismo ocasiona o anti-capitalismo. Acontece que eu penso que isso é o contrário. Se eles desejam genuinamente eliminar o estado, eles são anarquistas, mas eles não são realmente capitalistas, não importa o quanto eles desejam afirmar que são.

As pessoas que se autodenominam de "anarco-capitalistas" normalmente querem definir "capitalismo" como a mesma coisa que um livre mercado, e "socialismo" como intervenção estatal contra tal. Mas então o que é um livre mercado? Se você quiser dizer como simplesmente todas as transações voluntárias que ocorrem sem a interferência estatal, então isso é uma definição circular e redundante. Neste caso, todos os anarquistas são "anarco-capitalistas", até mesmo o mais inflexível anarco-sindicalista.

Definir o anarco-capitalismo como um sistema de propriedade privada é igualmente problemático, porque onde você traçaria a linha entre privado e público? Sob um estado, propriedade estatal é considerado "público", mas como um anarquista, você sabe que isso é uma farsa. É uma propriedade privada pertencente a um grupo que se chama estado. Se algo está pertencido a 10 pessoas ou 10 milhões não o torna mais ou menos "privado".

Indo um pouco mais fundo, pode haver questões sobre como os direitos de propriedade são definidos e a natureza da posse entre diferentes tipos de anarquistas. Obviamente, os anarco-capitalistas não querem o governo para decidir quem irá possuir qual propriedade. Então até o mais dos extremistas do proprietarismo, são ainda efetivamente anarquistas; eles apenas tem uma ideia diferente de como uma sociedade anarquista irá se organizar.

Mas o foco nos objetivos, e penso, é muito mais enfatizado em comunidades anarquistas, às custas de enxergar os meios. Os objetivos, às vezes, levam as pessoas em direção a certos meios, mas são os meios que determinam os resultados, não os objetivos. E se os anarco-capitalistas seguirem meios anarquistas, os resultados serão a anarquia, não algum impossível "anarco-capitalismo".

Anarquia não significa utopia social, significa uma sociedade onde não exista autoridade privilegiada. Ainda haverá males sociais para serem tratados sob a anarquia. Mas a anarquia é um importante passo em direção a lutar contra esses males, sem dar à luz para todos os novos males.

Minha opinião sobre a impossibilidade do anarco-capitalismo, simplesmente, é o seguinte:

  • Sob o anarquismo, acumulação de massa e concentração de capital é impossível.
  • Sem concentração de capital, a escravidão assalariada é impossível.
  • Sem a escravidão assalariada, não haverá muitas pessoas que identificariam como "capitalismo".

A primeira parte disso, de que a acumulação de massa e a concentração de capital é impossível sob o anarquismo, tem vários aspectos.

Um grande problema é que o custo de proteger a propriedade aumenta dramaticamente conforme a quantidade de propriedade possuída aumenta, sem um estado. Isso é algo que raramente é examinado por ultraliberais, mas é crucial.

Um motivo pra isso é que a posse de propriedade em larga escala nunca é toda aglomerada geograficamente. Um bilionário não tem toda a sua propriedade em uma pequena área geográfica. Na verdade, este tipo de propriedade absenteísta é necessário para se tornar um bilionário, em primeiro lugar. Muitos super ricos possuem ações em grandes corporações que tem muitas fábricas, lojas de varejo, escritórios e similares em todo lugar. Deixando de lado se mesmo empresas de capital anônima são possíveis na anarquia, por enquanto, essa dispersão geográfica significa que o custo de proteger toda essa propriedade seria enorme. Não apenas pelo grande número de guardas necessários, mas porque alguém deve pagar esses guardas o suficiente do qual eles não apenas decidam tomar a loja local. Você poderia contratar guardas para vigiar os guardas, mas isso se torna um problema por si só...

Mas a propriedade precisa ser protegida não apenas dos invasores internos, mas da invasão estrangeira também. Vamos imaginar que uma sociedade anarco-capitalista consiga formar, o Ancapistão, se assim desejar. Próximo ao Ancapistão está uma nação capitalista estatista. Vamos chamá-la de Aynrandia. Bem, os aynrandianos decidem "hmm, o Ancapistão precisa de um estado para proteger os seus cidadãos. Nós deveríamos tomá-los e dá-los um, para o seu próprio bem, claro". Neste ponto os bilionários no Ancapistão devem então se render, acolher os aynrandianos e Ancapistão nunca mais ou eles devem levantar um exército privado para repelir os aynrandianos. Não somente a segunda opção seria ridiculamente cara, por razões que eu descrevi antes, mas uma grande quantidade de propriedade será destruída se os aynrandianos decidir empenhar em uma guerra total moderna. Ahh, mas e todas as pessoas da classe média do Ancapistão, eles não formariam uma milícia para se defender? Bem, sim, mas eles não irão formar uma milícia para defender um monte de propriedade de bilionários.

Os anarco-capitalistas geralmente tem um ideia florida absurda do relacionamento entre patrão e trabalhador do qual não se baseia na realidade. Quase ninguém acorda e vai para o trabalho pensando "graças à Deus pelo meu maravilhoso chefe, que foi amável o bastante para empregar um derrotado como eu". Quando a invasão externa chega, a classe média irá defender a si mesma e sua própria propriedade. Mas eles não vão arriscar suas vidas pelo Wal-mart sem ter uma parte disso.

Então, devido ao aumento do custo de proteção da propriedade, chega um nível liminar, onde acumular mais capital se torna economicamente ineficiente, simplesmente em termos de guardar a propriedade. A polícia e a proteção militar é o maior subsídio que o estado dá ao rico. Em certo sentido, os objetivistas estão corretos de que o capitalismo requer um governo para proteger a propriedade privada.

Além do mais, sem um sistema financeiro e bancário protegido pelo estado, acumular lucros sem fim é quase impossível. O estado policial/ militar ajuda a manter os ricos rico, mas é o sistema financeiro que os ajudou a ficar ricos, em primeiro lugar, às custas de todo mundo.

Primeiro, bancos privilegiados pelo estado criam uma oferta limitada de fontes do qual se pode receber serviços bancários. Essa cartelização permite-lhes fugir com uma quantidade relativamente alta de reserva fracionária bancária, em que mais é emprestado do que, na realidade, exista. Por aumentar a oferta monetária em uso de uma maneira unilateral, isso cria uma situação onde pessoas que tomam empréstimos estejam efetivamente roubando de todos os outros. As empresas que financiam a expansão forçam seus concorrentes a fazer isso ou então vão a falência, por meio de licitação o preço dos recursos. Ao aumentar o custo de entrada, isso limita e reduz a quantidade de concorrentes em cada indústria, reduzindo os salários.

E o regime de moeda fiduciária e banco central, por inflacionar constantemente a oferta monetária, destrói a capacidade das pessoas para poupar, portanto os forçando a pedir empréstimos a fim de iniciar ou expandir um negócio, comprar uma casa ou um carro. Literalmente e diretamente concentra a oferta de capital nas mãos de um grupo cada vez menor de pessoas, destruindo poupanças e alimentação do poder aquisitivo para aqueles com taxas de crédito mais altas. Isso reduz os salários e torna as pessoas dependentes daqueles que ainda tem grande quantidade de capital para os contratá-los.

Sob a anarquia, qualquer um poderia emprestar dinheiro para qualquer um, não haveria algo especial conhecido como um "banco" por si só (ou para colocar de um modo diferente, qualquer um poderia levantar um cômodo e dizer "banco"). Sem concorrência legal e capacidade para criar quantidades volumosas de dinheiro do nada (a ameaça de "corrida ao bancos" e/ ou desvalorização de cédulas limitaria isso, de forma efetiva, para um nível muito pequeno, o suficiente para pagar minimamente por si mesmo, no máximo) , a oferta monetária não estaria mais nas mãos de um cartel. O empréstimo se tornaria raro e a poupança seria muito difundida, distribuindo o capital de forma mais ampla, ao invés de forma muito mais estreita, portanto, diluindo o preço do capital. Sob um sistema assim, qualquer mudança na demanda seria atingida por uma vasta gama de concorrentes, conduzindo os lucros de volta à média.

Obviamente, sob o anarquismo, algo como "propriedade intelectual" não existiria, então qualquer modelo de negócio que dependa de patentes e direitos autorais para ganhar dinheiro também não existiria. Isso contribuiria para a diluição que eu mencionei anteriormente.

À medida que o preço do capital é diluído, a quota de produção que vai para os trabalhadores aumenta. O que eventualmente veríamos seria, eventualmente, uma escassez laboral global permanente. As empresas concorreriam por trabalhadores, ao invés do contrário.

O que é provável, a julgar pela história, é que algo como um sindicalismo privado surgiria, onde os donos de propriedade de valor de produção alugariam para organizações de trabalhadores, simplesmente porque seria mais fácil para eles do que tentar contratar pessoas em uma base semi-permanente.

A mineração foi organizada desse modo por um bom tempo, por exemplo, até o advento de empresas de mineração anônimas financiadas por bancos, que comprou a maior parte dos prospectores/ donos no século dezenove.

Então vemos que, mesmo assumindo um regime de propriedade anarco-capitalista, qualquer coisa reconhecível como "capitalismo" para qualquer outra pessoa não poderia existir. Na verdade a sociedade se pareceria muito com o que os "anarco-socialistas" pensam de um "socialismo". Não exatamente assim, mas muito próximo do que qualquer um deles imaginaram como capitalismo.

No entanto, sob o anarquismo, até mesmo tal regime de propriedade estrita não seria garantida. Não existe modo para impô-la em uma comunidade que deseja operar de uma forma diferente. Eu prevejo que haverá lotes de diferentes comunidades e sistemas que irão concorrer para as pessoas viverem neles e, seja o que for que pareça funcionar, a melhor vai tender a se espalhar. Não há nada que os anarco-capitalistas poderiam impedir as pessoas de fazer acordos para tratar a propriedade de uma maneira mais fluida ou comunal do que eles preferirem. Nem há nada no anarco-socialismo que poderia impedir uma comunidade de organizar uma propriedade de uma maneira mais rígida ou individualista do que eles preferirem.


Assim como o anarco-capitalismo é impossível, o anarco-socialismo também é impossível, dependendo de como você defina as coisas. Na realidade, todos nós que se opõem ao estado, como aquela grande ficção do qual algumas pessoas tem um direito especial para fazer coisas de que mais ninguém não tenha, são anarquistas e o que acontecerá sob a anarquia? TUDO.

Traduzido por Rodrigo Viana
Artigo original aqui.


Anna O. Morgenstern é anarquista e escreve em seu blog "Tranarchism". Seus interesses incluem história econômica, psicologia social e teoria de organização voluntária.

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