Publicado
originalmente na revista Utopia, nº 9.
Por
Adelaide Gonçalves e Jorge Silva
"Sou
"indesejável", estou com os individualistas livres, os que
sonham mais alto, uma sociedade onde haja pão para todas as bocas,
onde se aproveitem todas as energias humanas, onde se possa cantar um
hino à alegria de viver na expansão de todas as forças interiores,
num sentido mais alto – para uma limitação cada vez mais ampla da
sociedade sobre o indivíduo."
Maria Lacerda de Moura
Um
dos temas da história do movimento operário e, particularmente, do
anarquismo, que até hoje tem sido pouco pesquisado é o da presença
feminina. Na história do anarquismo, e do socialismo no seu
conjunto, a atuação das mulheres, mesmo não sendo rara, é
significativamente menor do que a masculina. Existem razões de sobra
que explicam esse fato. Em primeiro lugar, na composição do
operariado que viria a gerar esses movimentos, a percentagem de
mulheres foi, ao longo de muitas décadas, muito inferior à dos
homens. Um fato ainda mais evidente nos círculos da intelectualidade
independente que esteve associada ao nascimento das idéias
socialistas. Por outro lado, a cultura familiar reacionária, ou
revestida de valores conservadores, estava bem presente no mundo
operário do século XIX e primeira metade do século XX, fazendo com
que as mulheres acabassem, mesmo nos movimentos sociais, adotando -
ou sendo empurradas em alguns casos - para uma posição subalterna,
ligada a velhos preconceitos associados a idéias como "fragilidade
feminina", papel "maternal" das mulheres ou da sua
"passividade".
É
certo que em muitos casos era tão-só a histórica divisão de
papéis sociais que relegava as mulheres para uma função doméstica
que contrariava, ou dificultava, a sua militância social. Talvez por
isso, entre as mulheres que mais se destacaram no movimento
anarquista, exista um número importante de personagens femininas que
optaram por uma vida pessoal independente, onde o casamento e uma
relação familiar mais tradicional, ou até a maternidade, foram
recusadas em nome da liberdade e da autonomia.
Evidente
que o papel das companheiras e cúmplices - sentimentais e de idéias
- dos anarquistas, e dos militantes operários em geral, foi de tal
forma relevante que constituiu, por si mesmo, uma destacada presença
feminina no movimento. Ainda que um feminismo pseudo-radical, incapaz
de situar histórica e culturalmente as relações de gênero, veja
nessa relação ou em aspectos tradicionais das relações dentro das
famílias dos militantes operários e anarquistas a prova irrefutável
da manutenção de valores machistas e de sujeição das mulheres nos
movimentos anti-burgueses.
A
cultura operária anti-capitalista sempre procurou valorizar os
direitos intrínsecos e específicos das mulheres. Era também comum,
na imprensa e literatura libertárias, a crítica das instituições
familiares, do casamento burguês e a defesa do amor livre[1] ,
tematização que alguns pensadores individualistas chegaram a dar um
relevo especial. Foi o caso de Emile Armand[2] e Han Ryner[3] .
Mulheres libertárias, como Emma Goldman[4] , também deram uma
particular atenção ao tema.
Mesmo
sendo assim, há que se reconhecer, a presença efetiva, marcante e
autônoma das mulheres, no movimento operário e no anarquismo, foi
limitada. O que não impediu que em alguns setores operários,
particularmente no têxtil, tecelãs e costureiras tivessem um papel
determinante na organização e nas lutas sindicais, a partir das
quais se destacaram importantes militantes libertárias e socialistas
que contribuíram para o anarco-sindicalismo e para o sindicalismo
revolucionário internacional. É no contexto da época e das
sociedades onde desenvolveram sua militância que poderemos explicar
as diferenças de presença, de importância ou de destaque entre
mulheres e homens no movimento operário anarquista ou no movimento
socialista em geral. Por essa mesma razão, não é de estranhar a
ausência de um número mais significativo de teóricas do anarquismo
e do socialismo, principalmente no século XIX.
"Maria Lacerda de Moura merece um lugar à parte, não só pela sua personalidade combativa, pela sua múltipla atividade de escritora e conferencista, como pelo destaque que chegou a ter, não só no Brasil, como em outros países."
Apesar
de tudo isso, nomes como Mary Wollstonecraft[5] , companheira de
William Godwin[6] e precursora do feminismo, Flora Tristán[7] ,
Louise Michel[8] , Emma Goldman, Voltarine de Cleyre[9] , Lucy
Parsons[10] , Tereza Mané[11] , Federica Monteseny[12] , May
Picqueray[13] , Giovanna Caleffi[14] e Luce Fabri[15] , deixaram
profundas marcas nos movimentos sociais e no pensamento libertário
de seus respectivos países. Em Portugal, alguns nomes se destacam:
Miquelina Sardinha[16] , Virgínia Dantas e Luisa Franco Adão. No
Brasil, Edgar Rodrigues, na sua obra Os Companheiros, que reúne em
cinco volumes uma ampla pesquisa biográfica de militantes
anarquistas, lista o nome de 52 mulheres que tiveram especial
relevância no movimento social, no período que vai do final do
século XIX à metade do século XX.
Entre
estas mulheres, Maria Lacerda de Moura merece um lugar à parte, não
só pela sua personalidade combativa, pela sua múltipla atividade de
escritora e conferencista, como pelo destaque que chegou a ter, não
só no Brasil, como em outros países da América do Sul, tendo os
seus textos divulgados em Portugal, na França e, principalmente, na
Espanha.
Nascida
em Minas Gerais a 16 de maio de 1887, desde jovem se interessou pelo
pensamento social e pelas idéias anticlericais. Formou-se na Escola
Normal de Barbacena, em 1904, começando logo a lecionar nessa mesma
escola. Inicia então um trabalho junto às mulheres da região,
incentivando um mutirão de construção de casas populares para a
população carente da cidade. Participou da fundação da Liga
Contra o Analfabetismo. Como educadora, adotou a pedagogia libertária
de Francisco Ferrer Guardia[17] . Após se mudar para São Paulo,
começou a dar aulas particulares e a colaborar na imprensa operária
e anarquista brasileira e internacional. No jornal A Plebe (SP)
escreveu principalmente sobre pedagogia e educação. Seus artigos
foram também publicados por jornais independentes e progressistas,
como O Combate, de São Paulo e O Ceará (1928), de Fortaleza, de
onde se extraiu o texto Feminismo? Caridade?, bem como em diferentes
jornais operários e anarquistas de todo o Brasil.
Em
Fevereiro de 1923, lançou a revista Renascença, publicação
cultural divulgada no movimento anarquista e entre setores
progressistas e livre-pensadores. A importância desta militante pode
ser avaliada, entre outros, pelo fato de que, em 1928, jovens
estudantes e trabalhadores paulistas terem invadido o jornal
pró-fascista italiano Il Piccolo, como resposta a um artigo que
caluniava violentamente a pensadora libertária. Na mesma época,
Rachel de Queiroz[18] polemizou acaloradamente, nas páginas d’ O
Ceará, com um jornalista cearense que atacou Maria Lacerda.
Ativa
conferencista, tratava de temas como educação, direitos da mulher,
amor livre, combate ao fascismo e antimilitarismo, tornando-se
conhecida não só no Brasil, mas também no Uruguai e Argentina,
onde esteve convidada por grupos anarquistas e sindicatos locais.
Entre 1928 e 1937, a ativista libertária viveu numa comunidade em
Guararema (SP), no período mais intenso da sua atividade
intelectual, tendo descrito esse período como uma época em que
esteve "livre de escolas, livre de igrejas, livre de dogmas,
livre de academias, livre de muletas, livre de prejuízos
governamentais, religiosos e sociais".
Maria
Lacerda de Moura pode ser considerada uma das pioneiras do feminismo
no Brasil e uma das poucas ativistas que se envolveu diretamente com
o movimento operário e sindical. Entre os seus numerosos livros
destacam-se: Em torno da educação (1918); A mulher moderna e o seu
papel na sociedade atual (1923); Amai e não vos multipliqueis
(1932); Han Ryner e o amor plural (1928) e Fascismo: filho dileto da
Igreja e do Capital (s/d).
O
texto de Maria Lacerda de Moura que transcrevemos de seguida foi
publicado no jornal independente O Ceará (1928), de Fortaleza, a
pedido da então jovem escritora Rachel de Queiroz, que se
consagraria como uma das grandes romancistas brasileiras
contemporâneas. Esse texto expressa o pensamento de Maria Lacerda de
Moura sobre o feminismo e sua visão anarco-individualista. Uma
filosofia libertária bastante influenciada por Han Ryner, um
pensador libertário original que se destacou em França como
ativista anti-militarista, anti-clerical e defensor do amor livre.
Outra influência notória no texto é a de Emile Armand.
É
certo que ele não representa todo o pensamento da anarquista
brasileira. Como todo militante, com larga atividade literária,
passou por diferentes fases e sua reflexão abordou temas tão
diversos comoa guerra, o malthusianismo e a pedagogia libertária.
"Após a fundação do Partido Comunista dirigentes desse partido, fizeram várias tentativas para aliciá-la, a pensadora libertária recusou-se a abandonar sua visão de mundo, mantendo até ao fim da vida o seu anarquismo individualista."
Polêmica
na literatura e na militância, Maria Lacerda de Moura passou pela
Maçonaria e pela Fraternidade Rosa Cruz, com quem rompeu
denunciando-a como agente do nazismo. Atravessou algumas fases de
maior envolvimento social e outras de isolamento, umas de otimismo e
outras de declarado pessimismo. E, se no fim da vida, permanecia num
certo pessimismo, isso deve-se certamente às divergências e
rupturas que, no fim da década de 20, confrontavam anarquistas e
comunistas ao mesmo tempo em que acontecia a ameaçadora ascensão do
fascismo. No entanto, quando após a fundação do Partido Comunista
dirigentes desse partido, fizeram várias tentativas para aliciá-la,
a pensadora libertária recusou-se a abandonar sua visão de mundo,
mantendo até ao fim da vida o seu anarquismo individualista[19].
Maria
Lacerda de Moura é praticamente desconhecida no Brasil, onde um
certo feminismo parece querer ocultar aquela que seria uma das
primeiras e mais importantes ativistas das causas das mulheres, mas
que nunca reconheceu no Estado, no Direito e no acesso profissional
burguês a sua causa. Na verdade, isso acontece porque, antes de
tudo, via generosamente a luta feminista como parte integrante do
combate social compartilhado igualmente por homens e mulheres
engajados na luta pela eliminação de toda exploração, injustiça
e preconceito. Talvez por isso mesmo, ela seja ainda um símbolo
incômodo para toda a sociedade conservadora, até para o atual
conservadorismo feminista, mero arrivismo social de classe média em
busca do seu lugar ao sol no Estado e no capitalismo, tal como foi
para as sufragistas da classe média e das elites do seu tempo.A
militante anarquista morreu em 1945, no Rio de Janeiro.
Notas:
[1] Giovanni Rossi (1856-1943), idealizador da Colônia Cecília fundada em 1891 por anarquistas italianos no sul do Brasil, chegou a escrever o livro Un Episodio d’amore nella Colonia Cecilia, onde analisa a sua experiência pessoal de um amor plural e as dificuldades de superação das relações e moral convencional numa comunidade libertária.
[2] Emile Armand (1872-1963).Um dos mais importantes militantes anarquistas individualistas franceses. Autor de L’ Iniciation Individualiste Anarchiste e Anarquismo e Individualismo.
[3] Han Ryner (1861-1938). Pensador e escritor anarquista individualista francês nascido na Argélia. Pacifista, anticlerical e defensor do amor livre. Autor de O Pequeno Manual Individualista e de O Quinto Evangelho, exerceu grande influência sobre Maria Lacerda Moura, mais visível no seu livro Han Ryner e o Amor Plural, de 1933.
[4] Emma Goldman (1868-1940). Militante e pensadora anarquista de origem russa, emigrou para os EUA em 1886. Em 1919 foi expulsa para a Rússia, mas logo teve de abandonar o país por discordar do que denominava a evolução autoritária da Revolução Soviética. Viveu em vários países e teve um importante papel no apoio à Revolução Espanhola de 1936. Viria a falecer no Canadá.
[5] Mary Wollstonecraft (1759-1797). Ativista libertária inglesa, companheira de William Godwin e autora do livro precursor do feminismo Vindicatin of the Rights of Woman, editado em 1792.
[6] William Godwin (1756-1835). Considerado um dos primeiros pensadores anarquistas modernos foi o autor do livro Investigação Acerca da Justiça Política, editado em 1873.
[7] Flora Tristán (1803-1844). Libertária, de pais peruanos, nascida em Paris. Preocupada com o problema social, engajou-se nas lutas operárias e escreveu, em 1843, a União Operária, uma das primeiras propostas de organização internacional dos trabalhadores.
[8] Louise Michel (1833-1905). Professora e militante anarquista francesa. Participou da Comuna de Paris e acompanhou de forma ativa o crescimento do movimento operário e do anarquismo francês.
[9] Voltairine de Cleyre (1866-1912). Uma das mais ativas agitadoras e oradoras anarquistas americanas, colaborou na revista Mother Earth e destacou-se por tratar dos temas referentes às mulheres e ao amor livre.
[10] Lucy Parsons (1853-1942). Militante operária e anarquista americana. Companheira de Albert Parsons, um dos mártires de Chicago, continuou sendo uma ativa militante operária até ao final da sua vida, dando destaque aos temas da mulher e do racismo.
[11] Teresa Mané (1865-1939). Militante anarquista e professora, ficou conhecida pelo pseudônimo de Soledad Gustavo, foi companheira de Federico Urales e mãe de Federica Montseny, que constituíram uma das famílias mais ativas no movimento anarquista espanhol.
[12] Federica Montseny (1905-1994). Uma das mais conhecidas militantes anarquistas espanholas. Militante da CNT, durante a Revolução de 1936 integrou o governo republicano como ministra da saúde, por decisão majoritária, embora polêmica do movimento anarquista.
[13] May Picqueray (1898-1983). Anarquista individualista e ativa pacifista francesa.
[14] Giovanna Caleffi (1897-1962). Militante anarquista italiana, companheira de Camilo Berneri, assassinado pelos estalinistas em Barcelona. Continuou sua militância em Itália até morrer. Sua filha Maria Louise Berneri, foi também militante anarquista.
[15] Luce Fabri (1908-). Ativa militante anarquista uruguaia ainda viva, filha de Luigi Fabri (1877-1935) um dos mais ativos anarquistas italianos deste século.
[16] Miquelina Sardinha (1902-1966). Professora e militante anarquista portuguesa, companheira de Francisco Quintal (1898-1987) ativo militante anarco-sindicalista.
[17] Francisco Ferrer y Guardia (1859-1909). Pedagogo e militante anarquista espanhol que desenvolveu os princípios da Escola Moderna baseada no ensino misto, laico, crítico e científico. O seu método e filosofia de educação espalharam-se por diversos países entre os quais o Brasil. O movimento operário, principalmente o anarco-sindicalista, criou escolas nos sindicatos baseadas no pensamento de Ferrer. Francisco Ferrer viria a ser fuzilado, em 1909, em razão das suas idéias e da sua militância social.
[18] Rachel de Queiroz (1910-). Romancista e cronista brasileira nascida no Ceará. Autora dos romances: O Quinze; João Miguel; Caminho das Pedras e Memorial de Maria Moura, entre outros. Esteve próxima às posições trotskistas e hoje gosta de se definir como "uma anarquista doce".
[19] Embora no livro de Míriam Leite, Outra face do feminismo, se tente provar a aproximação de Maria Lacerda de Moura do Partido Comunista, Otávio Brandão, dirigente comunista da época, e ex-anarquista, desmente na sua autobiografia, Combates e Batalhas (São Paulo: Alfa-Omega, 1978), que a sua tentativa tenha resultado.
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Adelaide
Gonçalves é historiadora e professora da Universidade Federal do
Ceará e Jorge Silva é militante anarquista e colaborador da
imprensa libertária.
Bibliografia:
- Combates e Batalhas, por Otávio Brandão - São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1978.
- Os Companheiros (vol 1 a 5), por Edgar Rodrigues - Florianópolis: Editora Insular, 1997-1998.
- Os Libertários, por Edgar Rodrigues - Petrópolis: Editora Vozes, 1988.
- Outra Face do Feminismo: Maria Lacerda de Moura, por Míriam Lifchtitz Moureira Leite - São Paulo: Editora Ática, 1984.
- Jornal O Ceará, Fortaleza, 1928.