sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Pelo descentralismo social



Por Rodrigo Viana

Minha preocupação com o governo do PT não tem nada a ver com "implantação do comunismo", "vai virar Cuba", e essas coisas ditas sem cabimento. O que me preocupa é a veia centralizadora e, por consequência, mais ou menos autoritária, que sempre existiu no partido. Ao menos nas altas cúpulas (você não acha que o vereador petista da sua cidade possui planos mirabolantes sobre bolivarianismo, certo?). Nada muito diferente dos outros partidos de esquerda existentes hoje, de onde se originaram em alas dentro do próprio PT.

Mas de todo modo a esquerda tradicional brasileira, fiel ao apego às políticas estatistas partidárias ou não, é de uma "esquerda jurássica", presa em pensamentos já desgastados e órfã de novas perspectivas. E isso se reflete nas eleições desse ano. Soma-se ao fato de que sua linha de atuação é quase que incompatível com as principais mudanças de base que vem ocorrendo nas transformações de sociedades como a economia compartilhada nos EUA e Europa; as redes de cooperativas sociais na Europa; produção em pequena escala integrada por redes; movimentos sociais de base, populares, espontâneos, não centralizados e sem um único líder como o Occupy nos EUA, Movimento Passe Livre no Brasil e os bolsões de democracia livre do Occupy Democracy na Inglaterra; impressoras 3D; compartilhamento de arquivos (torrent) e informações (wikileaksanonymous) via internet; moedas digitais e comunidades autônomas e auto-geridas como as dos zapatistas e curdos.

TODA essa esquerda não compreende bem essa transformação social que vem ocorrendo no mundo. Elas não estão realmente preparadas, pois seus pensamentos não dão base para empreendimentos plurais, descentralizados e autônomos. A esquerda, esta esquerda particularmente, terá que mudar se quiser manter o status de "representante do povo", do "partido da mudança". E com isso abraçar suas raízes libertárias e contestadoras há muito tempo esquecidas. No final, não vai depender de quem estiver no poder porque os anseios da população não estarão na pauta dos partidos, mas entre a própria população.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

“Isso não é capitalismo”



Por A Division by Zer0

É um tema recorrente nos últimos tempos que sempre que alguém vai apontar sofrimento e coisas geralmente ruins acontecendo por causa do Capitalismo, os apologistas ultraliberais irão surgir e dizer que “Isso não é Capitalismo”. Eles irão alegar que o governo desempenhou um papel grande demais e por isso nós não podemos, de fato, considerar isso uma falha do sistema em si, mas deve pôr toda a culpa na intervenção do governo[1].

Isso está começando  a ficar bastante chato, então acho que é hora de explicar por que eu considero que isso não é uma falácia do escocês verdadeira.

Primeiramente, 'Capitalismo', como uma palavra sendo bastante recente, somente entrou no vocabulário principal no início do século vinte por Werner Sombart, uma marxista que usava a palavra em sua crítica do sistema. Antes disso, o uso da palavra tinha sido esporádico e em variantes de raiz, com o mais importante sendo pelo próprio Karl Marx que escreveu sobretudo o modo de Produção Capitalista.

Esse conceito tem sido ampliado no século passado para significar um sistema econômico completo cujo a característica central é o mesmo modo Capitalista de produção que Marx criticava com precisão. Secundário a isso é a situação sócio-política no qual este modo de produção existe. Isso pode variar do imperialismo autoritário (Fascismo) ao minarquismo ultraliberal (O 'Ultraliberalismo' Americano)

Todos estes ainda são Capitalismo. Os meios de produção (fábricas, terra, trabalho) ainda são possuídas privadamente e a única coisa que muda é o grau de liberdade política e interferência do estado. Mas o grau em que estes dois parâmetros oscilam não tem nada a ver se o sistema é capitalista ou não.

A Escola Austríaca de Economia é, naturalmente, os denunciadores mais fanáticos desta ideia. Para eles, enquanto o Capitalismo não for absolutamente livre de qualquer governo, ele não pode ser chamado como tal (Mercantilismo é, aparentemente, a palavra mais correta). Algo que é, claro, completamente sem sentido. Mesmo sob o sistema mais orientado ao bem-estar social, o modo de produção ainda permanece em mãos de proprietários privados e, assim, a característica principal é cumprida. Para argumentar o contrário é similar a alegar que alguém não é escocês porque ele põe açúcar em seu mingau.

Os apologistas do Capitalismo de todas as escolas de pensamento, ainda que dizendo que existe restrição demais sobre o Capital ou que não existe restrição o bastante sobre o Capital, irão avidamente pôr a culpar pelo sofrimento humano dentro dos países capitalistas em qualquer outra coisa exceto o próprio sistema econômico. É muita intervenção estatal. Ou muita expansão de crédito. Ou freios e contrapesos não suficientes. Ou muita ganância. Ou muita Corrupção. Ou muita destruição ambiental. Qualquer coisa que seja. Culpar tudo que se tem direito, exceto o Capitalismo.

E ainda vemos o mesmo sofrimento e destruição ocorrendo dentro de qualquer sistema capitalista, mais cedo ou mais tarde. Quer isso seja a Maravilha de Livre Mercado do Chile, o Crescente Crescimento da Índia ou o Capitalismo de Estado da União Soviética. Não importa o quão muito ou pouca intervenção governamental existe no mercado, as mesmas crises acontecem, pobreza e fome permanecem e pessoas sofrem. E a única coisa que se mantém constante, o único denominador comum é o modo de produção Capitalista.

Isso é Capitalismo.


Nota:
[1] A hipocrisia que ganha de todas, claro, é quando as mesmas pessoas irão culpar todo o sofrimento da União Soviética, Coréia do Norte e China diretamente sobre o Comunismo sem estar disposto a reconhecer qualquer outro fator que não seja como aquelas nações se definiram.

Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.


A Divided by Zer0 é desenvolvedor de jogos e blogueiro.

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terça-feira, 28 de outubro de 2014

A grande promessa das Cooperativas Sociais


Por David Bollier

A agenda de austeridade costuma ser apresentada como inevitável, mas na verdade isso é só uma desculpa que corporativistas e conservadores usam para evitar qualquer discussão e debate. “Não existem alternativas!” eles trovejam. Mas como o site Co-operatives UK demonstra em um novo e brilhante relatório, existe uma diversidade crescente de alternativas práticas que são tanto viáveis financeiramente quanto efetivas socialmente. Elas são conhecidas como cooperativas multi-stakeholder (N.T.: de múltiplas partes), ou simplesmente como “cooperativas sociais”.

A maioria de nós está familiarizada com cooperativas de consumidores ou de trabalhadores, mas a cooperativa social é um pouco diferente. Em primeiro lugar, elas recebem de braços abertos vários tipos de membros – de funcionários pagos e voluntários a usuários de serviços e membros familiares e até investidores em economia social. Se, por um lado, muitas cooperativas se parecem e operam como suas primas no mercado tradicional, com um foco intenso em lucro e prejuízo, cooperativas sociais estão comprometidas com objetivos sociais como saúde, assistência a idosos, serviços sociais, e integração de ex-prisioneiros à força de trabalho. Elas conseguem misturar a atividade de mercado com o fornecimento de serviços sociais e com a participação democrática, tudo de uma vez.
Pat Conaty é o autor do relatório “Cooperativas Sociais: Uma Agenda de Coprodução Democrática para Serviços de Bem-Estar no Reino Unido” . Ele explica como as estruturas legais e organizacionais de cooperativas sociais — assim como seu ethos cultural — geram todo tipo de vantagem. Elas conseguem fornecer serviços de maneira mais eficiente que muitos negócios convencionais. Elas são mais adaptáveis e responsáveis que muitos programas do governo. E elas convidam a participação ativa e inclusiva de membros para decidir como lidar com suas necessidades — e para contribuir com seu próprio conhecimento e energias.
O relatório examina as melhores práticas de serviços cooperativos em saúde e bem-estar social, e traça um perfil do sucesso de cooperativas sociais na Itália, Japão, França, e Espanha, entre outros países, bem como em Quebec, Canadá.
A experiência italiana com cooperativas sociais é especialmente impressionante. Desde a aprovação de uma lei de 1991 que autoriza cooperativas sociais e oferece políticas públicas em apoio a elas, os italianos fundaram 14.500 cooperativas sociais que empregam 360.000 trabalhadores pagos e dependem de mais 34.000 membros voluntários. A cooperativa típica tem menos que 30 membros-trabalhadores, e fornece serviços para idosos, deficientes, e pessoas com doenças mentais. Algumas fornecem “empregos protegidos” para pessoas com deficiências e outros grupos vulneráveis.
Atualmente, cooperativas sociais estão fornecendo serviços para quase cinco milhões de pessoas na Itália. Elas trazem e gastam nove bilhões de euros anualmente. A sua taxa de sobrevivência após cinco anos é de 89 por cento.
Em Quebec, “cooperativas solidárias” tem construído uma economia alternativa de “solidariedade social” desde 1995. Essas cooperativas estão criando elos entre o movimento de cooperativas, sindicatos trabalhistas e o setor público enquanto atendem às necessidades das pessoas com eficiência e compaixão. O foco central do movimento de Quebec, Conaty escreve, é a criação de empregos e assistência domiciliar, mas elas também são usadas para “regeneração rural” ao ajudar a salvar lojas, correios e serviços sociais em áreas rurais.
O que é empolgante sobre as cooperativas sociais é sua habilidade de misturar de maneira criativa práticas públicas com a atividade de mercado – sem deixar que as forças de mercado dominem a agenda. Além disso, elas não simplesmente “administram serviços” no estilo de uma organização sem fins lucrativos tradicional; cooperativas são dirigidas por seus membros e respondem a eles.
O modelo da cooperativa social transforma usuários de cuidados sociais em parceiros, juntos com a força de trabalho, com ambos tendo uma participação no capital da empresa e acesso aos frutos do sucesso”, diz Ed Mayo, Secretário Geral da Cooperatives UK, um grupo britânico que promove a economia cooperativa.
Por que cooperativas sociais funcionam? Claramente, existem vários fatores indo de políticas públicas esclarecidas a culturas nacionais e compromissos éticos. Mas a ideia de coprodução é um motor poderoso que sustenta essa instituição social. Como descrito por duas acadêmicas britânicas, Sarah Carr e Catherine Needham:
O termo coprodução é usado cada vez mais para se referir a novos tipos de serviços públicos no Reino Unido, incluindo novas abordagens a cuidados sociais para adultos. Ele se refere à participação ativa de pessoas que usam serviços, bem como — ou em vez de — aquelas que tradicionalmente os tem fornecido. Ele dá ênfase ao fato de que as pessoas que usam serviços têm recursos, que podem ser utilizados para melhorar esses serviços, e não só necessidades a serem satisfeitas. Esses recursos geralmente não são financeiros, mas sim habilidades, experiência, e apoio mútuo que usuários de serviços podem contribuir para serviços públicos.”
Não é preciso dizer que a maior parte dos mercados e burocracias estatais não conseguem compreender a ideia de uma “democracia associativa” participativa e a construção de instituições alternativas que incentivem a participação. Mas, como explica Henry Tam da Universidade de Cambridge:
Comunidades inclusivas são formas mais eficazes de associação humana porque reconhecem o valor intrínseco de permitir que todos os seus cidadãos/membros/interessados interajam uns com os outros como iguais na hora de decidir como o poder vai ser utilizado por eles, pelo bem do todo e de cada um. Esse modelo comunitário é baseado na criação do pensamento cooperativos pelos socialistas utópicos de Owen e democratas cooperativos do final do século XIX/começo do século XX.”
O relatório de Conaty se aprofunda nos desafios organizacionais, legais e financeiros para o estabelecimento de cooperativas sociais de sucesso — e indica soluções disponíveis. Por exemplo, cooperativas sociais precisam de novos tipos de políticas públicas e de novos tipos de financiamento, tais como financiamento de risco e financiamento social.

Considerando o papel que cooperativas sociais podem desempenhar na reconstrução da cultura democrática, ao mesmo tempo em que satisfazem necessidades sociais urgentes e insatisfeitas, todos deveriam estar prestando mais atenção à grande promessa das cooperativas sociais. Esse relatório oferece uma análise factual importante para inaugurar uma nova conversa sobre uma alternativa atraente e de eficácia comprovada.
Traduzido por Pedro Galvão de França Pupo para o site Mercado Popular. Para ler o texto original clique aqui.

David Bollier é um ativista, estrategista político e escritor americano, tendo diversos livros publicados. É co-fundador do "Commons Strategies Group" e " Public Knowledge" e "Senior Fellow" do "Norman Lear Center". Para acessar seu blog pessoal clique aqui.

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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Individualistas anárquicos



Por Luis Diego Fernandez

Desde os últimos meses de 2013 e antecipando o que vem no primeiro semestre de 2014 [N. T.: artigo publicado em Janeiro de 2014] parece se formar um panorama em relação a novidades editoriais sobre livros que se referem, de alguma forma ou outra, a tradição do chamado anarquismo individualista, a saber: a edição pela primeira vez em espanhol de Formas de vida en común sin estado ni autoridad e Sexualismo revolucionario (Editorial Innisfree) textos principais de Émile Armand, quase de forma simultânea com a aparição de "Contra los pastores, contra los Rebaños", de Albert Libertad (Pepitas de Calabaza), difusor da ideia anarco-individualista com o citado Armand. Na mesma direção podemos adicionar a raridade da primeira revista impressa e digital sobre anarquismo individualista que será lançada em Março, com colaboradores espanhóis e latino americanos, assim como as filas das numerosas re-edições da obra de Henry David Thoreau: "Walden ou a vida nos bosques" (Errata Naturae), Desobediência Civil (Editorial Innisfree) ou o primeiro volume de Diario (Capitán Swing). A persistência da semente do anarquismo individualista se deve também ao êxito editorial contínuo de Michel Onfray que, em Filosofar como un perro (Capital Intelectual), seu recente livro, mostra a ideia de pós-anarquismo, atualizando ao último de Foucault, assim como em Deleuze e Guattari. E não devemos esquecer que Christian Ferrer publicará um reescrito de seu inescapável ensaio libertário intitulado Cabezas de tormenta (2006) pelo selo Pepitas de Calabaza durante a primeira metade do ano.

O que responde esta avalanche editorial de inéditos, clássicos, reedições, revistas ou ideias simplesmente que transitam a frondosa e singular árvore do anarco-individualismo? A diminuição do anarco-comunismo ou do gesto coletivista do anarquismo canta sua obsolência? Certamente, em grande medida o mesmo que seu dogmatismo, teimosia e exigência extrema de realizar o paraíso na terra. Os anarquistas individualistas, nesse sentido, foram os irmãos desobedientes, com sua semente ácrata comum (crítica à autoridade, ao poder centralizado do estado, às formas de dominação nas diferentes esferas), mas reivindicaram, antes de tudo, a transformação do indivíduo e suas práticas morais, uma visão excêntrica e estetizante, um maior dandismo moral e, em alguns casos, uma dissidência a respeito à propriedade e ao mercado (de onde se defenderá, como em Proudhon, pela posse por parte dos trabalhadores a respeito do valor de seu trabalho).

Introduzindo um pouco de história, não custa sempre lembrar que o termo grego an-archos revela o sem fundamento, sem poder, sem essência, sem autoridade, mas não a desordem como normalmente se pensa de modo súbito ou precipitado. O que não está, é a arché, a raiz. Pode existir a ordem sem a autoridade? Talvez possa-se responder com outra pergunta que Etienne de la Boétie, amigo de Montaigne, formulou em seu Tratado da servidão voluntária: por que queremos ser governados? O que nos concede para querer que nos governem? Por que servimos? Uma pergunta tão anômala quanto radical, tão extrema quanto certeira e irrecorrível, que realizou no século dezesseis aos quinze anos de idade.

A partir da pergunta pelo poder e autoridade (ou sua falta) é trafegar pela tradição anarquista. Linhagem antiga que remonta a figuras ou comunidades como os essênios, os anabaptistas, Lao Tzé, ou Diógenes. Já dentro do século dezenove é geralmente dito que duas grandes correntes são as vigas do anarquismo (do qual também emergem o liberalismo e o marxismo). Essa dupla sessão, esses dois blocos são formas igualmente lícitas para compreender a via libertária: por um lado, o anarco-comunismo, cujos pensadores modelares foram Piotr Kropotkin e Mikhail Bakunin e, no outro sentido, o anarco-individualismo, no qual pode atribuir filósofos como Max Stirner, Henry David Thoreau ou Friedrich Nietzsche. Um caso singular como o de Pierre-Joseph Proudhon pode ser contestado por ambas linhagens, porém o certo é que o mutualismo propagado pelo pensador francês, na verdade, se assemelhava a uma forma de anarco-individualismo. Inclinação que podemos ampliar a outros representantes de marca saxônica como Herbert Spencer, Benjamin Tucker ou Lysander Spooner. O anarquismo é um, porém suas variações são tão abundantes e até contraditórias como as cores do arco-íris: anarca-feminismo (Emma Goldman), anarco-sindicalismo (Errico Malatesta, Noam Chomsky), eco-anarquismo (Murray Bookchin, os ambientalistas), anarco-capitalismo (Murray Rothbard), anarco-primitivismo (John Zerzan, Unabomber), anarco-queer (Judith Butler, Beatriz Preciado) e é possível seguir com algumas distinções mais ou menos sofisticadas. No caso do ramo anarco-individualista que parece florescer já faz um tempo, é possível verificá-lo já em 1793, nas próprias ideias de William Godwin, um dos pais fundadores da filosofia anarquista. Suas características parecem seguir válidas: racionalismo, anti-estatismo, auto-didatismo, comunitarismo, liberdade sexual são algumas delas. As figuras possíveis destas variações sempre foram aquelas que preconizaram que o indivíduo em primeiro lugar (como testemunho e exibição da vida emancipada) e logo o social (o grupo, o comunitário), ali teremos desenhos conceituais como a “associação de egoístas” de Max Stirner e o mutualismo de Proudhon, diferennte do federalismo de Bakunin e do comunismo anárquico de Kropotkin (“tudo é de todos”).

O anarquismo individualista que vemos nos textos revisados de pensadores como Emile Armand e Albert Libertad, assim como da grande tradição estadunidense, o chamado “anarquismo bostoniano” de Thoreau, Emerson e J. Warren, defendeu sempre a auto-organização sem hierarquias, a crítica ao trabalho assalariado, aos monopólios e oligopólios (produto de sua aliança com o Estado que os favorece) porém nunca a crítica à propriedade por si mesma nem ao mercado livre entre trabalhadores. Demolição dos privilégios, porém louvor da “posse”, o anarquismo individualista sempre teve um atrito amistoso com o liberalismo, recordemos que Proudhon e Bastiat se sentaram juntos (na esquerda) na assembléia legislativa após a Revolução Francesa. Por esse olhar tampouco temos que cair na redução liberal: no anarco-individualismo não existe a submissão ao aparato jurídico clássico liberal, a tradição da norma, nem um certo puritanismo (dito por Max Werber). Sim, existirá a linha do chamado anarco-capitalismo de modo impreciso ou libertarismo de modo eficaz e claro, que se assenta de modo mais firme desde a década de setenta nos Estados Unidos, fazendo pouco caso do conceito de propriedade lockeana assim como do jusnaturalismo, que se vê em temas de filósofos como Robert Nozick e Murray Rothbard. O libertarismo atual, como emergente deste entrelaçamento entre anarquismo e liberalismo, reivindica para si a tradição anarco-individualista no século vinte vista através do prisma da Escola Austríaca de Economia (F. A. Hayek e Ludwig von Mises) e, de certa forma, reivindica o conceito de liberdade negativa: nem interferência e nem obstrução da ação. Hoje a versão possível do anarquismo individualista vem precisamente pelo certo auge do libertarismo (sua expressão possível nestes tempos) produto das críticas aos partidos tradicionais, da representação ou das novas formas de vida.

O âmago do anarquismo individualista revisto é seu aporte hedonista, seu direito ao prazer, tal como diz Christian Ferrer em Cabezas de tormenta: “A eugenia se cruza neste ponto com a crítica ao matrimônio burguês hipócrita e com a aplicação do direito do próprio corpo. O discurso anarquista sobre a sexualidade é complexo, porque nele se cruza uma analítica sexual de índole científica, uma preocupação social de raiz médico-higienista, e ideais racionais fomentadas pelo romantismo, que não exclui uma dose de voluptuosa erotização discursiva, na que se destacam os chamados 'armandistas', seguidores das doutrinas individualistas de E. Armand. Os armandistas ou os leitores da brasileira Maria Lacerda de Moura difundiram o direito ao prazer, como direito 'natural' dos seres humanos”.

De modo que o hedonismo libertário sempre encontrou na tradição anarco-individualista um território mais fértil e amigável que no ascetismo monástico anarco-comunista. O próprio Michel Onfray, individualista, é um fiel confidente do louvor do vinho, da gastronomia e do erotismo. Por outro lado, a indústria pornográfica é terreno quase exclusivamente habitado pelos libertarians, como chamam nos Estados Unidos os cultuadores do libertarismo. De modo que a rigidez moral de certas tradições ácratas (crítica ao tabaco, álcool e drogas) aqui tem sido amortecidas com o libertinismo, porém em ambos os casos compactuam a mesma lógica amorosa, pacifista e em muitos casos ambientalista, em referência ao apoio de causas como o naturismo ou o veganismo. Nesse sentido, também deve ser marcado que o anarco-individualismo sempre tem sido feminista, a recordar uma grande expoente como Voltairine de Cleyre. A educação da mente livre será crucial para empoderar as mulheres na igualdade total entre gêneros.

O vigor do anarquismo individualista encontra sua semente nestes dias, precisamente pela sua heterodoxia, pela sua ruptura com ímpio dos cânones e pela vontade livre de falar através de condutas visíveis e vivas. O efêmero do voluntarismo comunitário do anarquismo individualista não é seu ponto fraco, mas ao contrário, seu forte, assim diz Armand: “Do ponto de vista individualista do anarquismo, parece difícil mostrar-se hostil a seres humanos que, contando somente com sua vitalidade individual tentando realizar todas ou parte de suas aspirações. Para não crer no valor demonstrativo das 'tentativas de vida em comum', os anarquistas individualista fazem tal propaganda em favor das 'associações voluntárias', que encontram muitas dificuldades para renegar dos lugares em que suas teses são praticadas com menos restrições que em qualquer outro local.”

Toda mudança social ocorre primeiro pela transformação do indivíduo, ali bradam essas vozes resgatadas. Não é negligenciável esse retorno em algum sentido, a singularidade adiada lamenta pela sua vontade para protestar e celebração de amor à vida.


Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.


Luis Diego Fernández possui formação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires, é ensaísta e leciona na Universidad Di Tella. Para acessar o seu blog clique aqui.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O novo PKK: desencadeando uma revolução social no Curdistão



Por Rafael Taylor

Enquanto a perspectiva da independência curda se torna cada vez mais iminente, o Partido dos Trabalhadores do Curdistão se transforma em uma força pela democracia radical.

Excluídos das negociações e traídos pelo Tratado de Lausanne de 1923, depois de terem um estado próprio prometido pelos aliados da Primeira Guerra Mundial durante a dissolução do Império Otomano, os curdos são a maior etnia sem estado do mundo. Mas hoje, apesar de um Irã inflexível, sobram cada vez mais obstáculos para uma independência de jure curda no norte do Iraque. Turquia e Israel já sinalizaram apoio enquanto Síria e Iraque têm as mãos atadas pelo rápido avanço do Estado Islâmico (antigo ISIS).

Com a bandeira curda tremulando do alto de todos os prédios oficiais e a Peshmerga mantendo os islâmicos afastados com a extremamente atrasada assistência militar dos EUA, o Curdistão do Sul (Iraque) se junta aos camaradas do Curdistão Ocidental (Síria) como a segunda região autônoma de facto do novo Curdistão. Já começaram a exportar seu próprio petróleo e retomaram a petrolífera Kirkuk, têm um próprio parlamento secularizado e eleito e uma sociedade pluralista, pediram reconhecimento da ONU, e não há nada que o governo do Iraque poderia fazer – ou os EUA fariam sem o apoio de Israel – para detê-los.

A luta curda, no entanto, é qualquer coisa exceto estritamente nacionalista. Nas montanhas acima de Erbil, no antigo coração do Curdistão, passando pelas fronteiras da Turquia, Irã, Iraque e Síria, nasce uma revolução social

Imagem: Mapa atual da Síria e Iraque. Regiões amarelas no norte da Síria são controladas por curdos sírios; regiões amarelas-esverdeadas no nordeste do Iraque por curdos iraquianos; regiões cinzas pelo Estado Islâmico; regiões rosas pelo governo do Iraque; regiões salmão pelo governo da Síria; regiões verde-claras por rebeldes sírios (fonte: Wikimedia Commons).

A Teoria do Confederalismo Democrático

Na virada do século, enquanto o sempre radical estadunidense Murray Bookchin desistia de tentar revitalizar o movimento anarquista contemporâneo sob a sua filosofia da ecologia social, o fundador e líder do PKK Abdullah Öcalan foi preso no Quênia por autoridades turcas e condenado à morte por traição. Nos anos seguintes, o velho anarquista ganhou no militante endurecido um improvável devoto, cuja organização paramilitar – o PKK – é amplamente listada como uma organização terrorista por causa da guerra violenta de libertação travada contra a Turquia.

Nos seus anos de confinamento solitário, dirigindo o PKK por detrás das grades enquanto sua pena era alterada para prisão perpétua, Öcalan adotou uma forma de socialismo libertário tão desconhecida que pouquíssimos anarquistas tinham sequer ouvido falar: o municipalismo libertário de Bookchin. Depois Öcalan modificou, especificou e rebatizou a visão de Bookchin como “confederalismo democrático”, e como consequência a União das Comunidades do Curdistão (Koma Civakên Kurdistan ou KCK), o experimento territorial do PKK de uma sociedade democrática livre e direta, foi mantida em segredo para a grande maioria dos anarquistas, e ainda mais para o público geral.

Apesar de a conversão de Öcalan ter sido um ponto crucial, um renascimento mais amplo do esquerdismo libertário e da literatura independente estava descendo as montanhas e passando de mão em mão entre os praças após o colapso da União Soviética nos anos 1990. “[Eles] analisaram livros e artigos de filósofos, feministas, (neo)anarquistas, comunistas libertários, comunalistas e ecologistas sociais. Foi assim que escritores como Murray Bookchin [e outros] chegaram aos seus focos”, nos conta o ativista curdo Ercan Ayboga.

Öcalan embarcou, nos seus escritos da prisão, num minucioso re-exame e autocrítica da terrível violência, dogmatismo, culto à personalidade e autoritarismo que ele havia promovido: “Ficou claro que nossa teoria, programa e práxis da década de 1970 produziu nada além de um separatismo fútil e violência e, ainda pior, que o nacionalismo que deveríamos nos opor infestou a todos nós. Mesmo nos opondo em princípio e retórica, aceitamos, no entanto, [o nacionalismo] como inevitável.” Antes líder inquestionável, Öcalan agora argumenta que “o dogmatismo é nutrido por verdades abstratas que se tornam formas habituais de pensar. Quando você põe essas verdades generalistas em palavras, você se sente como um alto sacerdote a serviço do seu deus. Esse foi o erro que cometi.”

Öcalan, um ateu, estava finalmente escrevendo como um livre pensador, libertado da mitologia marxista-leninista. Ele mencionou estar buscando uma “alternativa ao capitalismo” e uma “reposição ao modelo colapsado do (…) 'socialismo realmente existente'”, quando cruzou com Bookchin. Sua teoria do confederalismo democrático se desenvolveu a partir de uma combinação da inspiração de intelectuais comunalistas, “movimentos como os Zapatistas”, e outros fatores históricos da luta no Curdistão do Norte (Turquia). Öcalan proclamou-se como estudante de Bookchin, e depois de uma falha tentativa de correspondência por e-mail com o velho teórico, que para o seu azar estava muito doente para tal troca em seu leito de morte em 2004, o PKK o celebrou como “um dos maiores cientistas sociais do século XX” na época de sua morte dois anos mais tarde.

A prática do Confederalismo Democrático

O próprio PKK aparentemente seguiu seu líder, não só adotando a visão específica de eco-anarquismo de Bookchin, mas internalizando ativamente a nova filosofia na sua estratégia e tática. O movimento abandonou a guerra sangrenta pela revolução stalinista/maoísta e as táticas de terror que carregava, e começou a usar amplamente uma estratégia não-violenta visando uma maior autonomia regional.

Depois de décadas de traições fratricidas, cessar-fogos fracassados, prisões arbitrárias e recorrentes hostilidades, em 25 de abril deste ano o PKK anunciou uma retirada imediata de suas forças na Turquia e sua reposição no norte do Iraque, acabando efetivamente com o conflito trintenário com o estado turco. Simultaneamente o governo turco realizou um processo de reforma constitucional e legal para consagrar direitos humanos e culturais à minoria curda dentro de suas fronteiras. Isso veio como o componente final da longa negociação entre Öcalan e o primeiro ministro turco Erdoğan como parte do processo de paz iniciado em 2012. Não houve violência do PKK por um ano e estão sendo feitos pedidos para retirá-los das listas de terroristas do mundo.

Resta ao PKK, no entanto, uma história sombria – práticas autoritárias que pegam mal para esta nova retórica libertária. Levantar verbas através do comércio de heroína, extorsão, recrutamento coercitivo e saques generalizados era constantemente reivindicado ou atribuído a suas sucursais. Se for verdade, nenhuma desculpa para este oportunismo pode ser feita, apesar da óbvia ironia do próprio estado genocida turco fundamentar-se em boa parte do lucrativo monopólio da exportação legal de opiáceos “medicinais” estatais para o ocidente e tornou possível pela conscrição e taxação desta atividade um orçamento contra o terrorismo e um exagerado exército (A Turquia tem o segundo maior exército da OTAN depois dos EUA).

Como é a hipocrisia costumeira da guerra contra o terror, quando movimentos de libertação nacional imitam a brutalidade do estado, invariavelmente os não representados são taxados de terroristas. O próprio Öcalan descreve esse vergonhoso período como de “gangues internas da nossa organização e banditismo aberto, [que] arranjaram operações aleatórias e desnecessárias, mandando jovens para a morte em massa.”

Correntes anarquistas na luta

Como mais um sinal de que está abandonando os caminhos marxistas-leninistas, porém, o PKK recentemente começou a fazer propostas explícitas ao anarquismo internacionalista, inclusive oferecendo uma oficina no Congresso Internacional de Anarquismo (International Anarchism Gathering) em St. Imier, Suiça, em 2012, que levou a confusão, desânimo e debate on-line, mas que passou despercebido para a imprensa anarquista mais ampla.

Janet Biehl, viúva de Bookchin, é uma das poucas a estudar a KCK em campo, e escreveu extensivamente sobre suas experiências no site New Compass, inclusive compartilhando entrevistas com radicais curdos, envolvidos nas operações diárias das assembleias democráticas e das estruturas federais, assim como traduzindo e publicando o primeiro estudo anarquista que virou livro sobre o assunto: Democratic Autonomy in North Kurdistan: The Council Movement, Gender Liberation, and Ecology (2013) [Autonomia Democrática no Curdistão do Norte: o Movimento dos Conselhos, Libertação de Gênero e Ecologia, tradução livre].

A outra única voz anarquista que fala inglês é o Fórum Anarquista do Curdistão (Kurdistan Anarchist Forum – KAF), um grupo pacifista de curdos iraquianos morando na Europa que diz não “ter nenhuma relação com outros grupos de esquerdistas”. Enquanto apóia um Curdistão federado, o KAF declara que “só vai apoiar o PKK quando eles desistirem completamente da luta armada e se engajarem em organizar movimentos de massa de base popular com o objetivo de suprir demandas sociais do povo, denunciarem e desmantelarem modos centralizados e hierarquizados de luta e substituí-los por grupos locais autônomos federados, encerrarem todas as relações, acordos e negociações com os estados do Oriente Médio e do Ocidente, denunciarem políticas de poder carismático e converterem-se ao anti-estatismo e anti-autoritarismo – só então seremos felizes em cooperar totalmente com eles.”

Seguindo Bookchin ao pé da letra

Este dia (exceto o pacifismo) pode não estar tão longe. O PKK/KCK parecem estar seguindo Bookchin ao pé da letra, quase totalmente, inclusive com a contraditória participação no aparato estatal via eleições, assim como previsto nos seus livros.

Como escrevem Joost Jongerden e Ahmed Akkaya, “o trabalho de Bookchin diferencia duas ideias de política, a helênica e a romana”, que são [respectivamente] a democracia direta e a representativa. Bookchin enxerga sua forma de neo-anarquismo como um renascimento da antiga revolução ateniense. O “modelo de Atenas existe como uma corrente que encontra expressões na Comuna de Paris de 1871, nos conselhos (sovietes) da primavera da Revolução Russa de 1917 e na Revolução Espanhola em 1936.”

O comunalismo de Bookchin contém uma abordagem em cinco passos:

  1. Entender pela lei as municipalidades existentes com o objetivo de tornar local o poder de decisão.
  2. Democratizar essas municipalidades através de assembleias de base.
  3. Unir as municipalidades “em redes regionais e confederações mais amplas (…) trabalhando para substituir gradualmente Estados-nações por confederações municipais”, enquanto assegura que “níveis 'maiores' da confederação têm essencialmente funções de coordenação e administração.”
  4. “Unir movimentos sociais progressistas” para fortalecer a sociedade civil e estabelecer “um ponto focal comum para todas as iniciativas cidadãs e movimentos”: as assembleias. Esta cooperação “não é [examinada minuciosamente] porque esperamos ver sempre um consenso harmonioso, mas – ao contrário – por que acreditamos em desacordo e deliberação. A sociedade se desenvolve pelo debate e pelo conflito”. Além disso, as assembleias são seculares, “[lutando] contra influencias religiosas na política e no governo”, e uma “arena para a luta de classes”.
  5. Para alcançar sua visão de uma “sociedade sem classes, baseadas no controle político coletivo sobre os meios de produção socialmente importantes”, se fazem necessárias a “municipalização da economia” e a “alocação confederada de recursos para garantir um equilíbrio entre as regiões”. Em termos leigos, isso equivale a uma combinação de autogestão dos trabalhadores e planejamento participativo para atender às necessidades sociais: a economia anarquista clássica.

Como coloca Eirik Eiglad, antigo editor de Bookchin e analista da KCK:
É particularmente importante a necessidade de combinar os conhecimentos dos movimentos progressistas feministas e ecológicos com os novos movimentos urbanos e as iniciativas cidadãs, assim como sindicatos e cooperativas e coletivos locais (…) Acreditamos que as ideias comunalistas de uma democracia baseada em assembleias irão contribuir para tornar esta mudança progressiva de ideias possível em bases mais permanentes e com mais consequências políticas diretas. Ainda que o comunalismo não é só um meio tático para unir estes movimentos radicais. Nosso chamado por uma democracia municipal é uma tentativa de dar razão e ética para a frente da discussão pública.

Para Öcalan, confederalismo democrático significa uma “sociedade democrática, ecológica e com liberdade de gêneros”, ou simplesmente “democracia sem estado”. Ele contrasta explicitamente “modernidade capitalista” com “modernidade democrática”, em que os antigos “três elementos básicos: capitalismo, Estado-nação e industrialismo” são substituídos por uma “nação democrática, economia comunal e indústria ecológica”. Isto implica “três projetos: um pela república democrática, um para o confederalismo democrático e um para a autonomia democrática.”

O conceito da “república democrática” refere-se essencialmente a reconhecer a cidadania e os direitos civis há muito tempo negados aos curdos, incluindo a possibilidade de falar e ensinar livremente sua própria língua. Autonomia e confederalismo democráticos referem-se às “capacidades autônomas das pessoas, uma forma de estrutura política mais direta, menos representativa.”

Enquanto isso, Jongerden e Akkaya notam que o “modelo do municipalismo livre visa realizar um corpo administrativo participativo, de baixo para cima, de nível local para o provincial.” O “conceito de cidadãos livres (ozgur yarttas) [é] o ponto de partida”, que “inclui liberdades civis básicas, assim como liberdade de expressão e organização.” A unidade central do modelo é a assembleia de bairro ou os “conselhos”, como eles são referenciados indistintamente.

Existe participação popular nos conselhos, inclusive de pessoas não-curdas, e enquanto as assembleias de bairro são fortes em várias províncias, “em Diyarbakir, a maior cidade do Curdistão turco, há assembleias em quase todo lugar.” Nos outros lugares, “nas províncias de Hakkari e Sirnak (…) há duas autoridades paralelas [a KCK e o estado], dos quais a estrutura democrática confederada é mais poderosa na prática.” A KCK na Turquia “é organizada nos níveis de vila (köy), bairro urbano (mahalle), distrito (ilçe), cidade (kent) e a região (bölge) que é chamada de 'Curdistão do Norte'.”

O nível “mais alto” da federação no Curdistão do Norte, o DTK (Congresso da Sociedade Democrática) é uma mistura de cargos delegados dos seus pares com mandatos revogáveis, que preenchem 60%, e representantes de “mais de quinhentas organizações da sociedade civil, sindicatos e partidos políticos”, que completam os 40%, dos quais aproximadamente 6% é “reservado para representantes de minorias religiosas, acadêmicos, ou outros casos particulares”.

A proporção de 40% dos que são delegados por grupos diretamente democráticos, não-estatistas da sociedade civil comparado àqueles que são burocratas partidários eleitos ou não-eleitos não está clara. A situação fica ainda mais complicada com a sobreposição de indivíduos de movimentos curdos independentes e de partidos políticos curdos e com a internalização por parte dos partidos de muitos aspectos do processo diretamente democrático. De qualquer forma, o consenso informal entre as testemunhas é de que a maior parte das decisões são tomadas por democracia direta em ambas as ocasiões; que a maioria das decisões são tomadas na base; e que as decisões são executadas de baixo para cima de acordo com a estrutura federal.

Por causa das assembleias e do DTK serem coordenados pelo ilegal KCK, do qual o PKK é membro, eles são designados como “terroristas” pela Turquia e pela chamada comunidade internacional (leia-se União Europeia, EUA e outros), por associação. O DTK também seleciona os candidatos do partido pró-curdos BDP (Partido Democracia e Paz) para o Parlamento turco, que por sua vez propõe “autonomia democrática” à Turquia, num tipo de combinação de democracia representativa e direta. Alinhado com o modelo federalista, propõe o estabelecimento de aproximadamente 20 regiões autônomas que autogovernariam diretamente (no modelo anarquista e não no Suíço) “educação, saúde, cultura, agricultura, indústria, serviços sociais e segurança, questões das mulheres, dos jovens e os esportes”, com o estado continuando a conduzir “relações internacionais, finanças e defesa”.

A Revolução Social decola

No chão, enquanto isso, a revolução já começou.

No Curdistão turco existe um movimento educacional independente de “acadêmicos” que puxam fóruns e seminários de discussão nos bairros. Há a Rua da Cultura, onde Abdullah Demirbas, o prefeito do município de Sur em Amed, celebra “a diversidade dos sistemas de religiões e crenças”, declarando que “começamos a restaurar uma mesquita, uma igreja católica caldeia-aramaica, uma igreja ortodoxa armena e uma sinagoga judaica”. Por outro lado, relatam Jongerden e Akkaya, “as municipalidades do DTK deram início a um 'serviços municipais multilíngues', produzindo um debate acalorado. Sinalizações foram erguidas em curdo e em turco, e comerciantes locais seguiram o exemplo”.

A libertação das mulheres é puxada pelas próprias mulheres através de iniciativas do Conselho de Mulheres do DTK, impondo novas regras como a “cota mínima de gênero de 40%” nas assembleias. Se um servente civil bate em sua mulher, seu salário é diretamente transferido à sobrevivente para fornecê-la segurança financeira e usá-lo como bem entender. “Em Gewer, se um homem tem uma segunda esposa, metade de seus bens vão para a primeira.”

Há as “Vilas de Paz”, comunidades novas ou transformadas de cooperativas, implementando seu próprio programa totalmente fora dos constrangimentos logísticos da guerra curdo-turca. A primeira comunidade assim foi construída na província de Hakkari, na fronteira com o Irã e o Iraque, onde “certas vilas” aderiram ao experimento. Na província de Van, uma “vila ecológica de mulheres” está sendo construída para acolher vítimas de violência doméstica, suprindo-se “com toda ou quase toda energia necessária”.

A KCK realiza reuniões bienais nas montanhas com centenas de delegados dos quatro países, atentos à constante ameaça do Estado Islâmico à autonomia do Curdistão do Sul e Ocidental. Os partidos ligados ao KCK no Irã e na Síria, PJAK (Partido por uma Vida Livre no Curdistão) e PYD (Partido da União Democrática), também promovem o confederalismo democrático. O partido da KCK no Iraque, PCDK (Partido pela Solução Democrática para o Curdistão) é relativamente insignificante, dirigido pelo centrista Partido Democrático do Curdistão e seu líder Massoud Barzani, presidente do Curdistão iraquiano, que só recentemente o descriminalizou e passou a tolerá-la.

Nas áreas montanhosas do extremo norte do Curdistão iraquiano, onde vivem a maioria das guerrilhas do PKK e do PJAK, contudo, a literatura radical e as assembleias prosperam, com a integração entre as montanhas, muitos curdos puderam continuar após décadas de expulsões e despejos. Nas últimas semanas, esses militantes desceram as montanhas do extremo norte para lutar ao lado da Peshmerga iraquiana contra o ISIS, resgatando 20 mil Yazidi e cristãos das montanhas do Sinjar e recebendo a visita de Barzani numa demonstração pública de gratidão e solidariedade, para o constrangimento da Turquia e dos EUA.

O PYD sírio seguiu, desde o início da guerra civil, os passos do Curdistão turco na transformação revolucionária da região autônoma sob seu controle. Após “ondas de prisões” sob a repressão dos baathistas, com “10 mil pessoas [levadas] em custódia, entre prefeitos, líderes de partidos locais, deputados, dirigentes e ativistas (…) o PYD curdo expulsou o regime de Baath do norte da Síria, ou do Curdistão Ocidental, [e] conselhos locais apareceram por toda parte”. Comitês de autodefesa foram improvisados para providenciar “segurança à beira do colapso do regime de Baath”, e “a primeira escola a ensinar língua curda” foi estabelecida, enquanto os conselhos interviam na distribuição equitativa de pão e gasolina.

No Curdistão turco, sírio e uma parte menos do iraquiano, as mulheres agora são livres para desvendar e para se encorajarem fortemente em participar da vida social. Antigos laços feudais estão sendo quebrados, as pessoas estão livres para seguirem qualquer ou nenhuma religião, e minorias étnicas e religiosas podem viver juntas pacificamente. Se são capazes de deter o novo califado, a autonomia do PYD no Curdistão sírio e a influência da KCK no Curdistão iraquiano pode fermentar uma explosão ainda mais profunda de cultura e valores revolucionários.

Em 30 de junho de 2012, o Comitê de Coordenação Nacional para a Mudança Democrática (NCB), a mais ampla coalizão revolucionária de esquerda na Síria, do qual o PYD é o principal grupo, também abraçou agora “o projeto de autonomia democrática e confederalismo democrático como um modelo possível para a Síria”.

Defendendo a Revolução Curda do Estado Islâmico

A Turquia ameaçou invadir territórios curdos se “bases terroristas estiverem estabelecidas na Síria”, enquanto centenas de guerrilheiros da KCK (incluindo do PKK) de todo o Curdistão cruzam a fronteira para defender Rojava (o Ocidente) dos avanços do Estado Islâmico. O PYD alega que o governo islâmico moderado da Turquia já está agindo contra eles ao facilitar a viagem de jihadistas internacionais a cruzarem as fronteiras para lutarem ao lado dos islâmicos.

No Curdistão iraquiano, Barzani, cujas guerrilhas lutaram a favor da Turquia contra o PKK na década de 1990 em troca de acesso aos mercados ocidentais, clamou por uma “frente curda unida” na Síria através da aliança com o PYD. Barzani intermediou o “Acordo de Erbil” em 2012, que deu origem ao Conselho Nacional Curdo, com o líder do PYD, Salih Muslim, confirmando que “todos os partidos são sérios e determinados a continuar trabalhando juntos”.

Mesmo sabendo que os estudos e as práticas das ideias do socialismo libertário entre as lideranças e a base são indubitavelmente um desenvolvimento positivo, resta-nos observar o quão dispostos estão em renunciar o sangrento passado autoritário. A luta curda pela autodeterminação e soberania cultural forma uma borda de prata nas escuras nuvens que pairam sobre o Estado Islâmico e as sangrentas guerras inter-fascistas entre islâmicos e baathistas e o sectarismo religioso que lhes deu origem.

Uma revolução pan-curda socialmente progressiva e secular com elementos socialistas libertários, unindo curdos iraquianos e sírios e fortalecendo as lutas turcas e iranianas, ainda pode ser um prospecto. Ao mesmo tempo, aqueles de nós que valorizam a ideia de civilização devem nossa gratidão aos curdos, que estão lutando noite e dia contra os jihadistas do fascismo islâmico nas linhas-de-frente da Síria e do Iraque, defendendo com suas vidas valores democráticos radicais.

Os curdos não têm amigos, exceto as montanhas”- provérbio curdo

Traduzido por Leo Griz e revisado por Rodrigo Viana. Para ler o original clique aqui.

Rafael Taylor é um socialista libertário e jornalista freelancer alocado em Melbourne, Austrália. É também apresentador do podcast “Floodgates Of Anarchy”, membro do ASF-IWA e organizador do Left Libertarian Alliance Melbourne.


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