sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Max Stirner e o liberalismo humano: crítica a Bruno Bauer

 
 
Por Rodrigo Ornelas
 
O livro O Único e sua Propriedade (1844), de Max Stirner, é dividido em duas partes: “O Homem” (Der Mensch) e “Eu” (Ich). Na primeira, o autor trata de expor criticamente a concepção histórica do “Espírito”, que se iniciou no fim do mundo antigo e culminou no ”Homem”, no fim da Modernidade; para na segunda expor suas concepções, sua filosofia, a partir dele mesmo como ser único, egoísta e proprietário. A primeira parte do seu livro, por sua vez, é ainda subdividida em dois capítulos, quais sejam, “Uma vida humana” e “Homens do tempo antigo e moderno”. O segundo capítulo, onde Stirner desenvolve sua dialética, expondo as posições das quais vai se afastando, é outra vez subdividida em três secções: “Os Antigos”, “Os Modernos” e “Os Livres”. Estes últimos recebem uma secção em especial, apesar de serem ainda modernos, os “moderníssimos entre os modernos”, segundo o próprio autor, pois é onde Stirner fala diretamente ao seu tempo. Esta secção consiste numa crítica de Stirner ao “Liberalismo”, pauta em crescimento desde a Revolução Francesa e que encontrava na esquerda hegeliana, movimento no qual Stirner estava inserido, diversas representações e diversos representantes. A Secção “Os livres” é, assim, também dividida em três itens: “O liberalismo político”, “O liberalismo social” e “O liberalismo humano”. Diferente dos seus contemporâneos liberais, no lugar da Liberdade (Freiheit) Stirner vai falar em Singularidade Própria (Eigenheit): “o ímpeto para a liberdade, como para qualquer coisa de absoluto, digno de qualquer preço, tirou-nos a singularidade própria, criando a renuncia a nós mesmos”[1]. E mais adiante conclui:
A singularidade própria comporta tudo aquilo que é singular, e volta a valorizar o que a linguagem do cristianismo degradou. Contudo a singularidade própria também não conhece medida estranha a si, e não é uma idéia, como a liberdade, a moralidade, a humanidade, etc.: é apenas uma descrição de quem é...o eu-proprietário (Eigner).[2]
Depois da secção “Os Livres”, Stirner, no segundo capítulo da segunda parte do seu livro, vai opor aos liberalismos político, social e humano, respectivamente, suas noções de “Meu poder”, “Minhas relações” e “Meu gozo pessoal”.

Este texto trata de uma análise da crítica stirneriana ao “liberalismo humano” ou “crítico”, encontrada do terceiro item, da terceira secção, do segundo capítulo, da primeira parte de O Único e sua Propriedade. Neste item, Stirner estará dialogando diretamente com um velho conhecido, talvez o jovem hegeliano mais criticado, mas provavelmente também o que reuniu mais adeptos (ainda que com ele rompessem depois): Bruno Bauer. O título da secção onde este item se encontra, já leva o nome do grupo liderado por Bruno Bauer e do qual Stirner fez parte por quase dez anos, Die Freien (Os Livres). Tentarei aqui, então, expor um pouco do que diz Bauer e da sua relação com Stirner, a partir da crítica que este último faz ao seu companheiro de Hippel[3], nessa pequena parte de O Único e sua Propriedade dedicada mais diretamente a ele.

A relação entre Bauer e Stirner
 
Ambos alunos do grande filósofo Georg Wilhelm Friedrich Hegel, os jovens Johann Caspar Schmidt (Max Stirner) e Bruno Bauer, três anos mais novo, aproximaram-se quando este último se associou aos hegelianos de esquerda, em 1840, deixando sua antiga posição (o hegelianismo de direita, de Philip Marheineke). Os primeiros escritos de Stirner são caracterizados pela influência baueriana. Podem-se destacar dois escritos de 1842, onde ele se refere diretamente a textos de Bauer: Arte e Religião, posterior ao panfleto baueriano A doutrina hegeliana da religião e da arte julgada do ponto de vista da fé, e uma crítica elogiosa ao polêmico texto de Bauer A Trombeta do Juízo Final Contra Hegel Ateu e Anticristo. Mesmo em 1844, ano em que foi escritoO Único e sua Propriedade, Stirner ainda demonstra uma posição com traços bauerianos, defendendo uma liberdade – apesar de também já inserir suas idéias particularistas-egoístas – no texto Algumas observações provisórias a respeito do Estado fundado no amor, onde ele afirma que o homem livre determina-se puramente a partir de si[4].

Na década de 1840, um grupo de intelectuais berlinenses, O Clube dos Doutores – que viria a ser Os Livres (Die Freien) – passou a se reunir em torno de Bruno Bauer, no bar de um cervejeiro de nome Hippel; e Stirner (assim como Ludwig Buhl, o editor Otto Wigand, Friedrich Engels, Edgar Bauer e Karl Schmidt, entre outros) participou do grupo durante um período importante. A crítica direcionada ao ex-companheiro no item “Liberalismo Humano”, de O Único e sua Propriedade, representa a consolidação de uma ruptura filosófica entre Stirner e Bruno Bauer, assim como a afirmação de uma filosofia própria por Stirner. Mesmo reiterando a crítica de Bauer ao “liberalismo” político e social, Stirner estende sua posição a uma oposição à própria “Crítica radical” (ou Pura) do amigo. Considerando agora a liberdade, tão aclamada e absolutizada pela “Crítica” baueriana, como mais um expoente do idealismo/espiritualismo alemão moderno, que nada mais faz senão afastar o indivíduo de si mesmo. Além de assumir abertamente a postura de “egoísta”, Stirner entra em quase total desacordo com Bauer – crítico do egoísmo, em nome da liberdade universal.

Ainda que em divergência, ambos não se tornaram inimigos ou opositores recorrentes, como no caso de Marx com Bauer. Em 1856, ao enterro do ainda jovem Max Stirner (49 anos), compareceram apenas, dos ex-Livres, Ludwig Buhl e o próprio Bruno Bauer.

A posição de Bruno Bauer
 
Em A Sagrada Família (1844), Marx vai dizer que a filosofia de Hegel é formada pela substância spinozista, a autoconsciência fichteana e a unidade hegeliana: “Strauss desenvolve Hegel a partir do ponto de vista de Spinoza, Bauer desenvolve Hegel a partir do ponto de vista fichteano, e ambos o fazem de maneira consciente no âmbito da teologia”[5]. Antes disso, porém, em 1841, o próprio Bruno Bauer mostrará essa dupla possibilidade de leitura hegeliana, no panfleto A Trombeta do Juízo Final Contra Hegel Ateu e Anticristo, onde passa-se por um revoltado cristão conservador que vinha denunciar a suposta natureza de fundo da filosofia de Hegel; e aí ele afirma que, em Hegel, embora a filosofia comece imolando-se à substância, culmina num poderoso sujeito dissolvedor, criador e tirano, que é a Autoconsciência (Selbstbewusstsein). Para este Hegel, o universo não passava de um produto do Eu. O Eu é, portanto, universal e é a própria realidade. A Autoconsciência é Liberdade (Freiheit), é atividade de indivíduos autônomos e criativos; é auto-construção, porém, imbuída de potencialidades genéricas.  A história é, assim, o espírito finito tomando consciência de sua liberdade, tornando-se infinita Autoconsciência, e esta, por fim, tornando-se tudo.

Desse modo, Bruno Bauer irá investir contra toda forma de tirania que impeça o homem de se tornar livre, de se tornar plenamente Homem; do mesmo modo, por conseqüência, irá se opor às idéias particularistas e egoístas. Assim, para Bauer, o primeiro objeto da crítica é a religião. A “atividade egoísta da sociedade civil” está presente no “Estado cristão”[6]. O “Estado cristão” é a prova de que a política ainda se preocupa com questões privadas, como a religião, e só se tornará livre quando for universal[7]. Em A Capacidade de Judeus e Cristãos atuais de se tornarem livres (de 1843), Bauer vai afirmar que o judeu, para se tornar livre, deve professar “não o cristianismo, mas o cristianismo dissolvido, a religião como tal dissolvida, isto é, o Iluminismo, a Crítica e seu resultado, a humanidade livre”. E mais a frente: “O movimento histórico que a dissolução do cristianismo e da religião em geral irá reconhecer como um fato completo e seguro para a vitória da humanidade sobre a religião, não pode mais ser adiada”; a “autoconsciência da liberdade” é oposta à circunstância religiosa[8]. A verdadeira emancipação humana, então, ao que parece, não está no “liberalismo político”, que só favorece o egoísmo do burguês, nem no liberalismo social, que só favorece o egoísmo do trabalhador; está no liberalismo crítico, ou “humano”, de Bauer e consortes.

Num texto posterior – do mesmo ano em que foi escrito O Único e Sua Propriedade, 1844, Bauer estenderá a sua Crítica ao Estado, numa autocrítica intitulada O que é agora objeto da Crítica?, à qual Stirner dedica um apêndice, no item sobre “liberalismo humano” (já que era uma publicação recente, posterior a redação deste item).

Como já foi dito, em textos menores, anteriores ao seu livro principal, Stirner compartilha da posição “liberal” baueriana – ainda que, entretanto, uma mudança possa ser notada nos próprios textos. Mas uma ruptura efetiva só é levada a cabo n’O Único. Aqui, a “liberdade” baueriana, apesar de radical, ainda é, para Stirner, condicionada, posta para mim, enquanto deve ser posta por mim para mim: eu sou a medida de todas as coisas, inclusive da minha liberdade; quando me assumo (eu, único, egoísta) já sou livre. O que sobrou da liberdade baueriana em Stirner – a liberdade stirneriana, se assim posso chamá-la – é melhor entendida como autonomia, e não num sentido racionalista, mas como autenticidade, “auto-criação”, como um reconciliar-se consigo mesmo, um vir para si.

Crítica de Stirner ao Liberalismo Humano
 
Em O Único e Sua Propriedade, Stirner vai caracterizar a Modernidade como a época do “Espírito”. Se para os antigos “o mundo era uma verdade”, para os modernos “o espírito era uma verdade”[9]. Desde Cristo – o primeiro moderno, para Stirner – esse espírito foi chamado por diversos nomes. O primeiro foi Deus. Mas toda idéia exterior a mim, toda causa máxima pela qual devo sacrificar meus interesses pessoais, será uma nova encarnação do espírito[10]. Assim, o Estado, a moral, o direito, a norma, a sociedade, ou qualquer coisa que se ponha entre eu e o outro é um fantasma moderno. Todos são formas de um universalismo, essencialismo, de uma metafísica que Stirner quer superar e que ainda é preservada em seu tempo. A crítica de Bruno Bauer, apesar atacar os aspectos “substancialistas” do pós-hegelianismo (em Feuerbach, por exemplo) – como também o faz Stirner – e de denunciar o estado burguês e a sociedade dos trabalhadores (socialismo/comunismo) como falsas liberdades, que criam novas formas de dominação egoísta, também, por sua vez, persegue um espectro, de outro (ou o mesmo) avatar do Espírito, a saber, o Homem. Stirner inicia o item “Liberalismo Humano” justificando-o: “Como o liberalismo só se completa ao criticar a si mesmo, no liberalismo ‘crítico’ (...) o melhor modo de o designar é atendendo ao homem, e por isso lhe chamamos liberalismo ‘humano’”[11]. Bauer deixa claro que sua proposta diz respeito ao universal e é oposta a todo particular. Para o liberal “humanista”, o trabalho comunista, por exemplo, é trabalho do indivíduo para si, por impulso material, ou seja, egoísta. 

O trabalhador precisaria conhecer a finalidade humana do seu trabalho, coisa que só é possível quando ele tiver consciência de si (Selbstbewusstsein), quando se conhecer como homem[12]. O que Stirner vai mostrar é que isto que ele chama de universal, ou de Espírito, ou de Homem, é necessariamente uma idéia própria, particular, é o teu universal, o teu espírito, o teu homem. Ele também deixa claro que a posição conseqüente de sua filosofia é o egoísmo assumido – característica da qual Bauer quer se livrar.

Antes de ser qualquer particularidade – como “judeu” ou “cristão” – somos humanos, segundo Bauer. Assim, o judeu é egoísta, quando exige uma emancipação política “só para ele”, judeu – do mesmo modo que o trabalhador é egoísta, quando exige a emancipação social para ele, trabalhador. Devemos lutar, então, como homens, pela emancipação humana[13]. Qualquer tentativa de se determinar pelo particular é, portanto, para Bauer, um tornar-se desumano: “o homem é espírito, e por isso todas as forças que lhe são estranhas, a ele espírito, todas as forças sobre-humanas, celestiais, desumanas, têm de ser destruídas para que o nome do ‘homem’ suplante todos os ouros”[14]. Para Stirner, no entanto, também o homem é uma força que estranha, a ele, único, pessoa encarnada; é também uma força “celestial”, que destrói sua singularidade própria (Eigenheit):

Tu és, sem dúvida, mais do que judeu, mais do que cristão, etc., mas também é mais do que ser “humano”. Tudo isso são idéias, não obstante tu tens um corpo. (...) Por isso é melhor virares as coisas do avesso e dizer: Eu sou um homem! Não preciso construir primeiro uma imagem do homem em mim porque esse homem já me pertence, tal como todas as minhas qualidades.[15]
A resposta stirneriana ao liberalismo é o “eu-proprietário” (Eigner); e ao liberalismo humano, o “meu gozo pessoal”. Estende-se a Bauer a conhecida frase de Stirner “Nossos ateus são pessoas devotas”[16]. O universal, seja em Deus ou no Homem, é uma forma de hipostasia que separa o indivíduo de si mesmo, fazendo-o determinar-se por outra coisa que não ele mesmo. “Ao velho ‘Glória a Deus’...corresponde o moderno ‘Glória ao Homem’”; “Eu, no entanto”, diz Stirner, “pretendo reservá-la só para mim”[17].
      
Bruno Bauer almeja um tipo de indivíduo universal. Não como a essência-genérica (Gattungswesen), de Feuerbach, que para ele é mais uma forma da “substância”; mas o sujeito autoconsciente que se universaliza. Uma organização humana onde toda atividade tem em vista a humanidade, onde os atos são desinteressados e onde não há espaço para o egoísmo. Max Stirner quer ser um indivíduo particular, único; para ele, toda atividade humana é interessada, pois parte de um indivíduo, contingente, histórica e geograficamente determinado, único. Assim, do mesmo modo que o Estado e a Sociedade, com já apontava Bauer, dizem respeito, na verdade, a interesses egoístas, também a Humanidade baueriana é “egoísta”. Sendo assim, Stirner prefere que ele mesmo se assuma egoísta e determine a si mesmo, antes que outro “egoísta” (o “liberal político”, o “liberal social”, ou o “liberal humano”) queira determiná-lo. O liberalismo humano, ou crítico, a despeito de toda crítica de Bauer à religião, é, para Stirner, mais uma religião:
O cristão agarra-se ao meu espírito, o liberal, à minha humanidade. (...) Agora que o liberalismo proclamou o advento do homem, podemos dizer que com isso se levou às últimas conseqüências o cristianismo. (...) A religião humana é apenas a última metamorfose da religião cristã. Pois o liberalismo é religião, uma vez que separa de mim minha essência para colocá-la acima de mim, porque eleva “o homem” na mesma medida que a religião o faz com seus deuses ou seus ídolos.[18] 
E, adiante, mostra que, ao dizerem “deves ser um homem completo, livre”, os “Críticos” caem na “tentação de proclamar uma nova religião, um novo absoluto, um ideal, nomeadamente a liberdade: Os homens devem tornar-se livres”[19].
          
Em A Questão Judaica (1842), Bruno Bauer afirma que a “verdade da Crítica” é a última, ou a primeira, verdade que o cristianismo buscou: o homem e a liberdade[20]. Destacando isso, Stirner conclui:
(...) aceitemos essa conquista [o homem]. Mas quem é o homem? Eu sou o homem. (...) O homem é geralmente visto como o universal. Ora, o verdadeiro universal está em mim e no egoísmo (...). Enquanto judeu ou cristão, um indivíduo satisfaz apenas algumas de suas necessidades, uma determinada exigência, mas não a si: é só meio egoísmo porque é o egoísmo de meio homem: metade ele próprio, metade judeu ou metade seu proprietário e metade escravo. [Para Bruno Bauer eles devem renunciar] à essência particular [e] reconhecer a essência universal “do homem” e considerarem-na como sua “verdadeira essência”. (...) Eu, porém, coloco a ênfase em Mim, e não no fato de ser homem. O homem é apenas alguma coisa enquanto qualidade (propriedade) minha.[21]
A “Crítica livre”, de Bauer, tem em vista o espírito, o homem; a “crítica própria”, de Stirner, sobre a sua, tem em vista apenas o gozo de si mesmo. Esta última “não é ‘livre’, pois não está livre de mim”, mas também “não é ‘servil’, pois não está a serviço de uma idéia”; ela é “meu domínio”[22].

***
Após a publicação de Max Stirner, que levantou críticas radicais aos seus contemporâneos, a esquerda hegeliana imediatamente se mostrou tocada pelo livro. Feuerbach e Moses Heß, por exemplo, logo publicaram respostas críticas a O Único e Sua Propriedade, que foram novamente respondidas por Stirner. Karl Marx, por um lado, escreve uma longa e irônica crítica ao livro (que terminou só sendo publicada em 1903, vinte anos após sua morte), mas por outro já se mostra muito menos feuerbachiano nos textos que compõem a Ideologia Alemã (1845), e nas Teses ad Feuerbach (1845) – talvez influenciado pela leitura de O Único, aja vista as críticas materialistas que ele dirige a Feuerbach – do que, por exemplo, em A Sagrada Família (1844) [23].

Bruno Bauer, por sua vez, também apresenta-se tocado pelas observações do amigo. Em suaCaracterização de Feuerbach, de 1845, Bauer mostra sua crítica da substância (spinozeana e, para ele, também feuerbachiana), “depois da bem sucedida investida do ‘egoísmo único’ (desinteressado da universalidade), de Max Stirner, matisada com certos reflexos ‘egoístas’ stirnerianos”[24], fato pelo qual também é criticado por Marx n’A Ideologia Alemã (em São Bruno). Marx chega a dizer que Bauer copia “desastradamente” Stirner para criticar Feuerbach[25]. Bauer, no entanto também critica o ex-livre, concluindo que
também o sujeito único de Stirner, embora representando de fato um esforço para “aniquilar” a abominada “potência objetiva” [a substância] (enquanto Feuerbach “sequer imagina arruiná-la”), (...) não resulta ser mais do que uma expressão do outro atributo do Deus ou da Substância, de Spinoza: o pensamento. Afinal de contas, tal indivíduo único (enquanto representa “o egoísta”, “o profano”, etc) seria apenas o oposto, a negação abstrata, o outro lado, do homem genérico de Feuerbach (“o comunitário”, “o sagrado”, etc.).[26]
O próprio Stirner já havia dado esse mesmo diagnóstico a Bauer, indicando que, apesar do receio do Crítico de se tornar dogmático, ele o é, na medida em que o “crítico e o dogmático têm os pés assentes sobre o mesmo chão, o dos pensamentos”[27].

Disso podemos concluir que é evidente que ambas as críticas não contemplam totalmente a posição dos seus respectivos interlocutores. No entanto, são de grande valor filosófico pelo importante debate que suscitam. Primeiro, por ser aquela situação pós-Hegel um momento chave para o desenvolvimento da filosofia contemporânea. Depois, e em conseqüência disso, porque ainda hoje nos debatemos com questões muito similares, sobre, por exemplo, fundamentos e ideologias político-culturais, bem como sobre contingência e a relação entre vida privada e vida pública.

Max Stirner, quando trata do liberalismo humano, dialogando diretamente com Bruno Bauer, encerra seu ciclo de críticas à Modernidade e ao Espírito, para em seguida trazer-nos a posição do único, aquele que ao fazer de tudo sua propriedade, destrói, automaticamente, todo conceito absoluto – como o Homem, a humanidade, a liberdade.
Referências:
Principal:
BAUER, Bruno, Die gute Sache der Freiheit und meine eigene Angelegenheit. In: SAß, Hans-Martin, Feldzüge der reinen Kritik. Frankfurt: Suhrkamp Verlang, 1968.
BAUER, Bruno, The Capacity of Present Day Jews and Christians to Become Free. In: The Philosophical Fórum. Massachusetts: Boston University, v. 8, n. 2/4, 1978.
BAUER, Bruno, The Jewish Problem – Introduction. In: STEPELEVICH, Lawrence, The young hegelians: an anthology. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
BAUER, Bruno, Was ist jetzt der Gegenstand der Kritik?. In: SAß, Hans-Martin, Feldzüge der reinen Kritik. Frankfurt: Suhrkamp Verlang, 1968.
STIRNER, Max, O Único e sua Propriedade. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

Complementar:
BAUER, Bruno, Hinrichs politische Vorlesungen, 2. Bd. In: SAß, Hans-Martin, Feldzüge der reinen Kritik. Frankfurt: Suhrkamp Verlang, 1968.
BAUER, Bruno, The Trumpet of the Last Judgment Against Hegel the Atheist and Anti-Christ: An Ultimatum. Lewiston/Lampeter/Queenston: The Edwin Mellen Press, 1989.
MACKAY, John Henry, Max Stirner: His Life and His Work. Concord, California: Peremptory Publications, 2005.
MARX, Karl, Sobre a Questão Judaica. São Paulo: Boitempo, 2010.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, São Bruno. In: A Ideologia Alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A correspondência da Crítica crítica. In: A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2009.
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich, A Crítica crítica absoluta ou a Crítica crítica conforme o Senhor Bruno. In: A Sagrada Família. São Paulo: Boitempo, 2009.
SOUZA, José Crisóstomo de, Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento Jovem Hegeliano. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1992.
STIRNER, Max, Textos Dispersos. Lisboa: Via Editora, 1979.

Notas:
[1] Max Stirner, O Único e sua Propriedade, p. 202.
[2] Ibidem, p. 221
[3] Bar onde os Livres costumavam se reunir.
[4] Max Stirner, Algumas observações provisórias a respeito do Estado fundado no amor, p. 120.
[5] Karl Marx, A Sagrada Família, p. 158.
[6] Bruno Bauer, The Jewish Problem – Introduction, p. 192.
[7] Idem, A boa causa da liberdade e a minha questão pessoal, apud Max Stirner, O Único e sua Propriedade, p. 177.
[8] Idem, The Capacity of Present Day Jews and Christians to Become Free, p. 148.
[9] Max Stirner, O Único e sua Propriedade, p. 35.
[10] Ibidem, p. 42.
[11] Ibidem, p. 161-2.
[12] Ibidem, p. 170.
[13] Karl Marx, Sobre a questão judaica, p. 33.
[14] Max Stirner, O Único e sua Propriedade, p. 169.
[15] Ibidem, p. 165.
[16] Ibidem, p. 239.
[17] Ibidem, p. 174.
[18] Ibidem, p. 226-7.
[19] Ibidem, p. 312.
[20] Bruno Bauer, A questão judaica, apud Max Stirner, O Único e sua Propriedade, p. 233.
[21] Max Stirner, O Único e sua Propriedade, p. 233-4.
[22] Ibidem, p. 459.
[23] Feuerbach também muda aos poucos sua posição ideológica após as críticas (de Bruno Bauer, Marx, Stirner, dos lutheranos, etc)
[24] José Crisóstomo de Souza, Ascensão e queda do sujeito no movimento jovem hegeliano, p. 95.
[25] Karl Marx e Friedrich Engels, A Ideologia Alemã, p. 102.
[26] Bruno Bauer, Caracterização de Ludwig Feuerbach, apud José Crisóstomo de Souza, Ascensão e queda do sujeito no movimento jovem hegeliano, p. 96.
[27] Max Stirner, O Único e sua Propriedade, p. 191.

Publicado originalmente na Revista Sísifo


Rodrigo Ornelas é mestrando em Filosofia pela Universidade Federal da Bahia e professor de filosofia pela Universidade Estadual de Feira de Santana.

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sábado, 21 de fevereiro de 2015

Por que anarquistas e “anarco”-capitalistas não podem ser aliados




Por A Division by Zer0

Uma das coisas que surge repetidamente quando alguém na direita liberal percebe a grande hostilidade dos anarquistas quando esses ultraliberais se apropriam do rótulo “anarquista” para si é a acusação de “prejudicar o movimento” por não estar disposto a olhar as diferenças do passado e trabalhar uns com os outros por uma sociedade sem estado. O argumento é que uma vez que tanto o anarquistas quanto “anarco”-capitalistas desejam uma sociedade sem estado, porém simplesmente com um diferente modo de produção (socialismo contra capitalismo, respectivamente), nós temos, pelo menos, um objetivo em comum. Nós devemos trabalhar juntos pela: Abolição do estado.

A primeira vista isso faz um pouco de sentido. Se nós dois queremos uma sociedade sem estado e se nós estamos dispostos a tolerar a organização produtiva de cada um dentro de suas respectivas áreas, então por que estamos lutando, discutindo e criticando uns aos outros quando unidos nós poderíamos estar muito bem tanto convencendo as pessoas quanto minando o estado?

A resposta é simples: Estratégia.
É verdade que os anarquistas não tentariam impor de forma violenta o socialismo libertário sobre outras áreas e outras pessoas. Isto é simplesmente contrário a toda a teoria por trás do anarquismo. Como tal, é de se esperar que após uma possível revolução, em algumas partes do mundo as relações capitalistas iriam permanecer e algumas dessas partes poderiam até se aproximar do modelo “anarco”-capitalista. Contudo, uma revolução não irá ocorrer por si só. As áreas que se transformam em anarquista ou “anarco”-capitalista irão ocorrer – se moverá para qualquer direção sem estado, pelos métodos que foram utilizados para trazer para a população em geral o ponto de ebulição da revolta.

E estes métodos são inerentemente opostos.

Os socialistas libertários de todos os tipos (sim, incluindo anarquistas individualistas anti-capitalistas) geralmente promovem estratégias de Ação Direta e Ajuda Mútua. Isso significa que eles apoiarão sindicatos, greves, tomada de controle de fábricas, cooperativas, bancos mútuos, comunas e tudo mais. Eles serão até mesmo menos hostis sobre atos estatais que dão mais poder para a classe trabalhadora[1]. Por outro lado, o argumento deles será baseado em assuntos que apóiam tais caminhos. Isso incluiria coisas como o fato de que a psicologia evolutiva humana é condutora da Ajuda Mútua, a validade da Teoria do Valor-trabalho e a consequente teoria da exploração, o imperativo moral pela auto-determinação e auto-gestão, uma hostilidade contra todos os tipos de dominação e hierarquia e assim por diante.

Por outro lado, os “anarco”-capitalistas, mesmo distintamente sem estratégia, são ideologicamente contrários à maioria dessas medidas que trariam uma sociedade para uma revolta libertária socialista. Eles são contra sindicatos (pelo menos a maioria deles são), contra a expropriação da terra e do capital por aqueles que trabalham nela, consideram que cooperativas são “ineficazes”, se opõem veementemente sobre todos os atos estatais que aumentam a seguridade social (enquanto são menos hostis aos atos estatais que simplesmente protegem mais a propriedade privada), etc. Ademais, as suas bases ideológicas os obrigam a atos como apologistas ao sistema através de sua rejeição da Teoria do Valor-trabalho, o apoio ético pelo direito à Propriedade Privada, acumulação e usura, a permissão ou até mesmo apoio da hierarquia e dominação enquanto elas forem “voluntárias” e assim por diante.

Mesmo que a estratégia que eles tem acabam sendo contrárias aos princípios anarquistas, dado que eles defendem a consolidação da força e discernimento à terceiros, é uma ideia nitidamente anti-ação direta.

Tudo isso deve tornar óbvio que existe uma brecha intransponível entre estes dois movimentos[2] que impede ambos de trabalharem juntos para mudar o sistema, dado que eles simplesmente estariam puxando em direções opostas e contrariando uns aos outros. Muito parecido com a diferença prática entre Propriedade Privada e Posse, o mesmo acontece com a diferença de estratégia e teoria que tornam a cooperação desses dois campos impossíveis.

Claro, se por simplesmente estar disposto a se fortalecer o bastante, muitas pessoas poderiam magicamente fazer aparecer repentinamente uma sociedade sem estado, então “unir forças” poderia fazer sentido. Mas o mundo não é um conto de fadas. É o caminho que trilhamos, os métodos que defendemos e as estratégias que usamos que definem que tipo de sociedade sem estado nós teremos no final.

Então “anarco”-capitalistas, ultraliberais e outros todos os tipos de proprietaristas, por favor, não nos peça para cooperar e aceitá-los como “companheiros anarquistas”. Nossa possível coexistência em uma futura sociedade sem estado é irrelevante quando, no mundo real, toda a sua visão de mundo é contra-produtiva para o que nós sugerimos.

Notas:
[1] Anarquistas não apóiam usar o estado para empurrar adiante regulamentações, mas não se opõem às regulamentações que beneficiam a classe trabalhadora a princípio. Tal regulamentação, mesmo que imperfeita, pode ser o resultado de ação direta ou pode dar algum tempo pra pensar aos trabalhadores para solicitarem mais e obterem aquilo que esperam.
[2] Bem, um movimento e uma ideologia, embora não há realmente qualquer movimento real atrás dos “anarco”-capitalistas.

Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o original clique aqui.


A Divided by Zer0 é desenvolvedor de jogos e blogueiro.

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