Este texto foi escrito nos anos 90 e é bem conhecido na internet anglófona.
Por Chris Wilson
Há dois anos atrás
quando eu estava estudando rumo a minha graduação em filosofia na
faculdade, eu escrevi uma réplica sobre a seção do The
Anarchist FAQ que cobre o
anarco-capitalismo.
Eu removi a réplica da internet porque eu não tive tempo ou
disposição para continuar a manter ou expandi-la. Três anos
depois, eu me vi discordando com as minhas antigas réplicas e
concordando com o FAQ.
O que segue é minha história.
Eu iniciei o meu posto como um ultraliberal de direita lendo Ayn Rand, que me dissuadiu
das simpatias bastantes confusas da esquerda que eu mantinha na
época. No entanto, eu era só um entusiasta da Rand por um curto
período de tempo e eu logo desenvolvi um interesse nos pensadores de
livre mercado “mais sensatos”, tais como von Mises, Nozick, Hayek,
David Friedman, etc. Eu era um ferrenho adepto do capitalismo
sem entraves e “apátrida” em torno de quase 3 anos, e
desenvolvi e/ ou adotei toda justificação filosófica e econômica
que possa ser concebida pela sua defesa. Entretanto, antes de eu ter me formado na faculdade eu lancei fora minha crença de que alguém pode reivindicar direitos de propriedade privada sobre a terra. Eu
defendia uma teoria de trabalho da propriedade e, considerando que a terra não é um bem produzido, descobri que
isso não era defensável de acordo com os princípios que eu
defendia. Conclui que aquele que acumula terra está colocando
uma restrição sobre a liberdade de outros de usá-la ou para
movimentar-se de forma sem justificação e, portanto, o requerente
deve compensá-los por pagar um imposto único sobre a terra para
ganhar direitos exclusivos a ela.
Apesar das minhas novas
visões georgistas socialistas da terra, eu ainda defendia um sistema
econômico capitalista no que diz respeito aos bens produzidos. No entanto, eu
me tornei muito mais crítico em relação às corporações e eu
fiquei chateado com os outros ultraliberais pela falta de foco deles sobre as injustiças perpetradas
pelas corporações. Eu desejava abolir cartéis corporativos,
subsídios, propriedade intelectual, privilégios regulatórios,
concessões de terras, etc. como eu os considerava violações da
liberdade. Se você pressionar um ultraliberal sobre os
privilégios que as corporações recebem, eles geralmente dizem “Ah,
bem eu sou contra eles”, contudo eles quase nunca tomam a
iniciativa em dirigir qualquer crítica contra elas. Mais frequente
do que parece, eles louvam as “virtudes” alegadas das
corporações, ao passo que focam sobre como o governo viola esses
“direitos” das corporações.
Em primeiro lugar,
quando eu me tornei um anarco-capitalista
eu achava que abusos corporativos poderiam ser evitados em um domínio
econômico em que as corporações não desfrutassem de tantos
privilégios regulatórios. Inicialmente eu liguei todas as empresas
“ponto com” e “comércio eletrônico” – eu considerava a
indústria da internet a ser aquela em que os princípios do livre
mercado fossem respeitados, ao contrário de tantas outras
indústrias. Entretanto, no ano passado eu vi todas essas empresas se
tornarem tão cruéis quanto qualquer multinacional. Eu pensava que todas
as empresas “ponto com” eram pequenas como um resultado do funcionamento
da indústria de acordo com princípios genuínos de livre mercado,
mas na verdade elas eram pequenas *apenas de início*. A maioria delas
já não são mais pequenas. Além disso, as empresas mais prósperas
estão hoje buscando se beneficiar do privilégio estatal, que é
evidente em muitas ações judiciais de propriedade intelectual que
estão atualmente pendentes na indústria do comércio eletrônico.
Quando eu estava
descobrindo isso (e me tornando um usuário Linux radical no
processo), eu estava trabalhando como representante de serviço ao
cliente em uma grande e bem conhecida corporação que produz programas de
computador (não é a Microsoft). O ato de trabalhar ao invés de ir
para a escola, deu-me um novo respeito por movimentos trabalhistas
organizados. Adicionalmente, isso me gerou uma simpatia na medida
que as corporações ferravam seus clientes. Como eu gastei os
próximos seis meses trabalhando para essa produtora de programas
bugados, eu cheguei à conclusão de que o meu emprego como
representante de “serviço ao cliente” envolvia um pouco mais do
que desenvolver racionalizações inteligentes para defender essas
atividades fraudulentas da empresa. A maioria dos outros representantes
adquiriu as racionalizações da empresa – a maioria dos
empregados, incluindo supervisores, acreditavam sinceramente que a
empresa fornecia serviço “de nível internacional” aos clientes,
o que não poderia estar mais longe da verdade. Sinto vergonha de
dizer que eu adquiri *algumas* das propagandas como um resultado de
buscar formas de apaziguar a ira dos clientes. E por causa da
posição em que nós estávamos – isto é, constantemente ouvindo
gritos e sendo criticados pelas políticas que fogem dos nossos controles –
era impossível se abster de ficar extremamente ressentido a repeito
das tristezas legítimas dos consumidores. Por fim, a empresa
adotou algumas novas políticas desagradáveis que eram tão
obviamente indefensáveis que eu tive que terminar com o meu
relacionamento com a empresa no geral. Fiquei completamente desiludido
com a cultura corporativa.
Embora eu fosse a favor
de mercados livres, eu era assim porque eu os considerava necessários pelos princípios que eu mantinha. Princípios sempre
vieram em *primeiro lugar* para mim – não a economia. No entanto, na época
em que eu parei de trabalhar na corporação de programas,
finalmente, a ficha caiu de verdade de que as empresas não poderiam *se
importar menos* sobre os princípios. As perguntas “Isso é correto?”
ou “Isso é justo?” sequer entram nas mentes dos tomadores de
decisão de empresas capitalistas – tais perguntas são
irrelevantes na vista deles. Embora eu fosse um ultraliberal na época, eu mantinha minhas visões porque eu acreditava
realmente que elas seguiam, de forma lógica, o meu amado princípio de
auto-governo. Apesar de que eu sabia que *muitas* empresas
capitalistas eram completamente desprovidas de princípios, em minha ignorância eu acreditava que isso era só verdade em grandes
corporações ajudadas pelo governo. Foi muito desanimador aprender
ao longo do tempo que este fato se aplicava para a *maioria* das
empresas, independente se elas eram ou não corporações que
lucravam a partir de favores estatais. Se elas realmente não recebem favores
vindos do estado, então elas tipicamente almejam recebê-los.
Uma semana depois eu
saí da empresa de programas de computador, tive sorte e consegui
um emprego fornecendo suporte técnico no Fornecedor
de Acesso à Internet (ISP) local. Eu pensei
comigo mesmo que essa empresa, sendo uma empresa local, seria
fundamentalmente diferente. Embora eu realmente prefira trabalhar
para o ISP em vez de trabalhar para a mega gigante de programas,
rapidamente se tornou óbvio para mim que as motivações e os
princípios (ou a falta deles) do presidente e dos maiores acionistas
do ISP não são diferentes dos de quaisquer grandes empresas. Embora o ISP
seja relativamente pequeno hoje, ele não pretende permanecer por
muito tempo. Eu vou dizer que a expansão de um ISP normalmente não
favorece os empregados, uma vez que nos obriga a assumir
responsabilidades pelos problemas dos clientes que estamos em
posição de corrigir (assim como era bem comum com a empresa de programas). Além disso, aqueles que comandam a empresa ainda
pensam nos empregados como um custo a ser minimizado. A regra é
contratar o mínimo possível, pagar-lhes a menor quantia possível e
fazê-los trabalhar mais vezes possível. Desde que iniciei na
empresa, eu tenho assumido muito mais responsabilidades do que apenas o suporte técnico, porém meu salário não tem aumentado. Apesar da
natureza técnica do meu emprego, os trabalhadores da mercearia
próxima ganham mais do que eu, visto que eles são sindicalizados e
eu não.
Minha experiência no
mundo do trabalho me obrigou a reconsiderar seriamente minha defesa
do capitalismo, sob qualquer forma. Como eu estava muito comprometido com os princípios ultraliberais, eu comecei a estudar os “anarquistas socialistas” (eu coloquei “socialistas anarquistas” em aspas,
embora hoje eu considero tal termo uma redundância – anarquistas
são necessariamente socialistas). Eu me obriguei a considerar o
desacordo fundamental que separa Bakunin, Kropotkin, e Malatesta de
Rand, von Mises e Friedman. Minha resposta para mim mesmo: os
defensores do capitalismo crêem que alguém pode ceder por escrito
ou vender a liberdade de alguém, enquanto que os anarquistas não.
Como um ultraliberal capitalista, eu era da opinião de que
se podia entrar em um acordo moralmente obrigatório ao que se sacrifica a liberdade de alguém em troca de um salário. Minha
posição era de que um trabalhador estaria cometendo fraude contra o
empregador se ele tentasse reter direitos ao produto completo do seu
trabalho. Meu argumento era de que se um empregador possui uma
reivindicação prévia “legítima” sobre o capital sendo usado,
então ele tem o direito de ditar seus termos de uso. O trabalhador
não tem o direito a qualquer coisa além do que o capitalista
concordar em dar, assim como o capitalista não tem o direito de tomar
qualquer coisa além do que o trabalhador concordar em dar (claro, eu não
percebi em meus tempos de “anarco-capitalista” que os
capitalistas quase sempre exigem mais do que o trabalhador
inicialmente concorda em dar).
Minha posição atual é
aquela em que uma pessoa não pode ser obrigada eticamente a algo por acordos que
restringem a liberdade dela em se auto-governar. Esse sempre foi o meu ponto de vista de que não se pode ser obrigado, por um
acordo, a ser um escravo. Embora uma pessoa possa aceitar um
contrato que determina ela a se servir como um escravo, ela pode ser considerada livre para finalizar esse contrato a
qualquer momento. No entanto, eu não vinha aplicando este princípio
para todas as formas de dominação – eu apenas aplicava para a
escravidão de pessoas como se fossem bens em tempo integral, e não para o trabalho assalariado, para a tirania doméstica, etc. Quando eu estava
resolvendo minhas questões a respeito deste assunto, decidi
simplificar minha decisão ao sujeitar-me a uma experiência de
pensamento: João é um indivíduo com nenhum acesso ao capital, ao
qual o exclui de ser um trabalhador autônomo. Ele deve encontrar
alguém que irá compartilhar o acesso ao capital, se ele quiser continuar a
comer. Felizmente Antônio tem bastante capital e está interessado em
compartilhar – sob certas condições, claro. Antônio diz a João que
ele pode usar o capital de Antônio para produzir, *desde que* João se
empenhe em 90% da produtividade enquanto Antônio se empenhe em 10%.
Ademais, João irá receber apenas 10% da receita além de seu trabalho
duro, enquanto Antônio fica com 90% para a sua própria gula. João concorda com essas condições porque ele não tem outra opção. Moralmente, João é obrigado por meio do próprio acordo a permitir que Antônio mantenha 8, das 9 partes do que João produz? O capitalista, claro,
responde “Sim” e, num certo tempo, eu teria dado a mesma resposta, muito
embora eu sabia intuitivamente que tal arranjo seria grandemente
injusto. Minha resposta atual é “Não” – essa relação entre
Antônio e João é inerentemente exploratória, e João tem direito a
algo muito melhor.
Isso completou minha
conversão ao anarquismo verdadeiro, quer dizer, o *socialismo
libertário*. O processo evolucionário foi lento – tudo não
aconteceu em uma noite. Eu continuei a me considerar um anarquista
individualista por algum tempo, e me mantive mais atraído pelas ideias
de Tucker e Proudhon que quaisquer dos anarquistas sociais. Mas
quanto mais eu lia Bakunin, Kropotkin, Malatesta e Rocker, e estudava
a Guerra Civil Espanhola e a Revolução Russa, eu concluía que o
anarquismo social era uma melhor alternativa. Diferente das
variedades individualistas e mutualistas do anarquismo, o
anarco-comunismo não fornece um caminho para o capitalismo se
restabelecer e isso teve um sucesso revolucionário parcial no
passado histórico de países como a Espanha e Ucrânia. O que
inicialmente me mantinha longe do anarquismo social era o fato de que
muitos dos seus defensores não salientam a perspectiva do que é
geralmente chamado de “tirania da maioria”, que eu penso ser uma
preocupação válida. Isso não pode ser suficientemente enfatizado que, sob
o anarquismo, ninguém seria forçado a se juntar a uma comuna ou a
uma federação. Se alguém deseja ser livre para trabalhar
independentemente de um coletivo democrático, essa liberdade seria
reconhecida e respeitada, desde que ele não tente acumular mais recursos do que se usa ou empregar pessoas
por um salário. Concedido isso, os anarquistas não iriam *proibir* o
trabalho assalariado, mas “acordos” em que trabalhadores cedem
por escrito a liberdade deles não iriam se fazer cumprir.
Uma vez fazendo a
transição do libertarianismo de direita para o de esquerda, eu
tenho descoberto que o facciosismo e o sectarismo é tão difundido aqui
quanto era lá, se não mais. A tecnologia é um bom exemplo de um
assunto que divide o movimento anarquista. Por um lado, existe os
ludistas anarco-primitivistas que se afastam de todas as formas de
tecnologia complexa e que desejam retornar para uma sociedade de
caçadores-coletores. E por outro lado, existe os anarquistas que reconhecem que a tecnologia pode ser benéfica se o seu desenvolvimento for
dirigido pelos próprios trabalhadores, de uma maneira que seja
responsável às comunidades que ela afeta. Eu fico em algum lugar
no meio, entre as duas posições – eu não tenho nenhum desejo de retornar
para uma sociedade de caçadores/ coletores, mas também preferiria não
depender de tecnologia que requeira uma divisão de trabalho tão
extrema em que a produtividade se torna uma atividade alienada e sem
sentido. Trabalhando na indústria de computadores, eu também
entendo que quando a complexidade tecnológica transcende nossa
habilidade de entendê-la, isso se torna uma instância da máquina
estar no controle de nós, e não o contrário. Se a tecnologia é uma
forma de libertação ou dominação, isso é um tópico debatido de
forma calorosa pelos anarquistas. Contudo, eles concordam, em oposição
aos “libertários” de direita, que uma sociedade em que as circunstâncias criadas pelos humanos forcem as pessoas a “fazerem acordos” para sujeitar as próprias vontades aos de um patrão, isso de nenhuma maneira é algo “livre”.
Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.
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7 comentários:
Bacana. Mas no fim fica a pergunta como evitar o Caminho da Servidão?
"sob o anarquismo, ninguém seria forçado a se juntar a uma comuna ou a uma federação."
Como assegurar isso?
Marcos não existe espaço para um "caminho da servidão" pois a autoridade é dispersa entre as pessoas. Não existe a figura de um governante ou grupo distinto porque ela é baseada na democracia direta e de estrutura anti-hierárquica. Seria instituições assim que assegurariam a autonomia das pessoas.
A propriedade vem da relação de uso, é utilitarismo, a mesma coisa que justifica a auto-propriedade. Só que a propriedade sobre a terra é alienável na forma de abandono ou troca. Já voltou a ser anarco capitalista?
"Nunca tecem críticas", e o agorismo (ou contra-economia) é o que então? A defesa do fim do FED é o que então? O bitcoin juntamente das demais altcoins é o que então? O site www.bndes.site é o que?
Ah, vá...
Propriedade sobre a terra... Não pode haver propriedade sobre recursos escassos finitos e não renováveis que a humanidade compartilha... Veja O planeta terra, como uma propriedade privada, da sociedade humana, e todos são sócios, você é mero herdeiro dos sócios ancestrais, cuja cota de participação vai diminuindo à medida que a população mundial aumenta, não pode cercar um pedaço sem haver comum acordo, ou, está roubando dos seus sócios muito menos cercar tal pedaço e se intitular um vitalício e hereditário proprietário, privando o acesso dos outros herdeiros... Só o fruto do trabalho pode ser individualizado, privatizado. Os recursos naturais do planeta, terra, atmosfera, água, vias naturais de acesso, baías, vias aéreas, espectro eletromagnético, etc, etc, etc, não podem, não foi você quem produziu.
Nossa, isso me parece um milagre. Sério quero cconversar com você.
Acho que faltou ao autor do artigo ler de fato autores de escola austríaca e libertários (sim, roubamos o termo pois não há propriedade intelectual e somos os herdeiros da tradição individualista, tanto do anarquismo como do liberalismo, que são ideias convergentes).
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