Por Joseph-Pierre
Proudhon
Título atribuído pela editora.
A
comunidade [N. do T.: Por "comunidade" Proudhon entende, como aliás ele mesmo diz, o "sistema comunista", uma "tirania mística e anônima", "a pessoa humana destituída de suas prerrogativas".] é opressão e servidão. O homem quer na verdade se
submeter à lei do dever, servir sua pátria, obsequiar seus amigos,
mas ele quer trabalhar naquilo que lhe agrada, quando lhe agrada,
tanto quanto lhe agrade; ele quer dispor de suas horas, obedecer
somente à necessidade, escolher seus amigos, suas diversões, sua
disciplina; prestar serviço por satisfação, não por ordem;
sacrificar-se por egoísmo e não por uma obrigação servil.
A
comunidade é essencialmente contrária ao livre exercício de nossas
faculdades, a nossos pendores mais nobres, a nossos sentimentos mais
íntimos; tudo o que se imaginar para conciliá-la com as exigências
da razão individual e da vontade não levará senão a mudar a coisa
conservando o nome; ora, se nós procuramos a verdade de boa fé,
devemos evitar as disputas de palavra.
Assim,
a comunidade viola a autonomia da consciência e a igualdade; a
primeira, comprimindo a espontaneidade do espírito e do coração, o
livre arbítrio na ação e no pensamento; a segunda, recompensando
com uma igualdade de bem estar o trabalho e a preguiça, o talento e
a asneira, o próprio vício e a virtude.
(...)
Que forma de governo iremos preferir?
-
Em! vós podereis perguntá-lo; e sem dúvida qualquer um dos meus
mais jovens leitores responde, vós sois republicano.
-
Republicano, sim; mas esta palavra não especifica nada. Res
publica é
a coisa pública. Ora, quem quer que queira a coisa pública, sob
qualquer forma de governo que seja, pode se dizer republicano. Os
reis também são republicanos.
-
Então vós sois democrata?
-
Não.
-
Como! Sereis monarquista?
-
Não.
-
Constitucional?
-
Deus me livre.
-
Então vós sois aristocrata?
-
De modo nenhum.
-
Vós quereis um governo misto?
-
Menos ainda.
- O
que sois então?
-
Eu sou anarquista.
-
Eu entendo! vós fazeis sátira; isto está dirigido ao governo.
-
De maneira nenhuma: vós acabais de ouvir minha profissão de fé,
séria e maduramente refletida; ainda que muito amigo da ordem, eu
sou, com toda a força do termo, anarquista. Escutai-me.
O
homem, para chegar à mais rápida e à mais perfeita satisfação de
suas necessidades, busca a regra: no começo, esta regra é viva para
ele, visível e tangível; é seu pai, seu senhor, seu rei. Mais o
homem é ignorante, mais sua obediência, mais sua confiança em seu
guia é absoluta.
Mas
o homem, cuja lei é conformar-se à regra, isto é, descobri-la pela
reflexão e pela argumentação, o homem pensa sobre as ordens de
seus chefes: ora, semelhante reflexão é um protesto contra a
autoridade, um início de desobediência.
Desde
o momento que o homem procura os motivos da verdade soberana, desde
este momento o homem se revoltou. Se ele não obedece mais porque o
rei comanda mas porque o rei prova, pode-se afirmar que de agora em
diante ele não reconhece mais nenhuma autoridade e que ele se fez a
si mesmo seu próprio rei.
Infeliz
de quem ousará conduzi-lo e não lhe oferecer, por sanção de suas
leis, senão o respeito de uma maioria: porque, cedo ou tarde, a
minoria fará maioria, e este déspota será derrubado e todas as
suas leis destruídas.
À
medida que a sociedade se fica mais esclarecida a autoridade real
diminui: este é um fato de que toda a história dá testemunho. No
nascimento das nações, é vão aos homens refletir e raciocinar:
sem métodos, sem princípios, não sabendo nem mesmo fazer uso de
sua razão, não sabem se vêem justo ou se enganam; então a
autoridade dos reis é imensa, nenhum conhecimento adquirido chega a
contradizê-la. Mas pouco a pouco a experiência cria hábitos e
estes, costumes; depois os costumes formulam-se em máximas,
arranjam-se em princípios, numa palavra, traduzem-se em leis, às
quais o rei, a lei viva, é forçado a respeitar. Vem um tempo em que
os costumes e as leis são tão multiplicados que a vontade do
princípio é por assim dizer englobada pela vontade geral; quem
tomar a coroa é obrigado a jurar que governará conforme os costumes
e os usos, e que ele não é ele mesmo, mas o poder executivo de uma
sociedade cujas leis se fizeram sem ele.
Até
lá, tudo se passa de uma maneira instintiva e, por assim dizer, com
o desconhecimento das partes: mas vejamos o termo fatal desde
desenvolvimento.
À
força de se instruir e de adquirir idéias, o homem acabou por
adquirir a idéia da ciência, quer dizer, a idéia de um sistema de
conhecimento conforme a realidade das coisas e deduzido da
observação. Ele procura então ou a ciência ou um sistema de
corpos brutos, um sistema de corpos organizados, um sistema do
espírito humano, um sistema do mundo: como não procuraria também o
sistema da sociedade? Mas, tendo chegado a este ponto, ele compreende
que a verdade ou a ciência política é coisa completamente
independente da vontade soberana, da opinião das maiorias e das
crenças populares, que reis, ministros, magistrados e povos,
enquanto vontades, não são nada para a ciência e não merecem
consideração alguma. Ele compreende de repente que, se o homem
nasceu sociável, a autoridade de seu pai sobre ele cessa no dia em
que, sua razão estando formada e sua educação completa, ele se
torna o associado de seu pai; que seu verdadeiro chefe e seu rei é a
verdade demonstrada; que a política é uma ciência, não uma
astúcia; e que a função do legislador se limita, em ultima
análise, à busca metódica da verdade.
Assim,
numa sociedade dada, a autoridade do homem sobre o homem está em
razão inversa ao desenvolvimento intelectual ao qual esta sociedade
chegou e a duração provável desta autoridade pode ser calculada
sobre o desejo mais ou menos geral de um governo verdadeiro, quer
dizer, de um governo segundo a ciência. E assim como o direito da
força e o direito da astúcia se restringem diante da determinação
cada vez mais ampla da justiça e devem acabar por se apagar na
igualdade; assim também a soberania da vontade cede diante da
soberania da razão e acabará por se destruir num socialismo
científico. A propriedade e a realeza estão em demolição desde o
princípio do mundo; como o homem procura a justiça na igualdade, a
sociedade procura a ordem na anarquia.
Anarquia,
ausência de senhor, de soberano[A], tal é a forma de governo de que
nos aproximamos todos os dias e que o hábito inveterado de tomar o
homem por regra e sua vontade por lei nos faz olhar como o cúmulo da
desordem e a expressão do caos. Conta-se que um burguês de Paris do
século XVIII, tendo ouvido dizer que em Veneza não havia nenhum
rei, que este bom homem não podia se restabelecer de seu espanto e
pensou morrer de rir à primeira notícia de uma coisa tão ridícula.
Tal é o nosso preconceito: todos quantos somos, nós queremos um
chefe ou chefes; e examino neste momento uma brochura cujo autor,
zeloso comunista, sonha, como um outro Marat, com a ditadura.
(...)
Esta síntese da comunidade e da propriedade nós a chamaremos
liberdade.
Para
determinar a liberdade, portanto, não reuniremos sem discernimento a
comunidade e a propriedade, o que seria um ecletismo absurdo.
Procuramos por um método analítico o que cada uma delas contém de
verdadeiro, de conforme ao voto da natureza e às leis da
sociabilidade, eliminamos o que elas contêm de elementos estranhos;
e o resultado dá uma expressão adequada à forma natural da
sociedade humana, em uma palavra, a liberdade.
A
liberdade é igualdade, porque a liberdade não existe senão no
estado social e fora da igualdade não há sociedade.
A
sociedade é anarquia, porque ela não admite o governo da verdade,
mas somente a autoridade da lei, isto é, da necessidade.
A
liberdade é variedade infinita, porque ela respeita todas as
vontades, nos limites da lei.
A
liberdade é proporcionalidade, porque ela deixa toda amplitude à
ambição do mérito e à emulação da glória.
A
liberdade é essencialmente organizadora: para assegurar a igualdade
entre os homens, o equilíbrio entre as nações, é preciso que a
agricultura e a indústria, os centros de instrução de comércio e
de armazenamento sejam distribuídos segundo as condições
geográficas e climáticas de cada país, a espécie de produtos, o
caráter e os talentos naturais dos habitantes, etc., em produções
tão justas, tão sábias, tão bem combinadas, que lugar algum
apresente nem excesso nem ausência da população, de consumo e de
produto. Aí começa a ciência do direito público e do direito
privado, a verdadeira economia política.
(...)
A política é a ciência de liberdade: o governo do homem pelo
homem, sob qualquer nome que se disfarce, é opressão; a mais alta
perfeição da sociedade se encontra na união da ordem e da
anarquia.
O
fim da antiga civilização chegou; sob um novo sol, a face da terra
vai se transformar. Deixemos uma geração se acabar, deixemos morrer
no deserto os velhos prevaricadores: a terra santa não mais cobrirá
seus ossos. Jovem, que a corrupção do século indigna e que o zelo
da justiça devora, se a pátria vos é querida, e se o interesse da
humanidade vos toca, ousai abraçar a causa da liberdade. Renunciai a
vosso velho egoísmo, mergulhai na onda popular da igualdade
nascente; lá, vossa alma revigorada retirará uma seiva e um vigor
desconhecidos: vosso espírito debilitado reencontrará uma indomável
energia; vosso coração, talvez já enfraquecido, rejuvenescerá.
Tudo mudará de aspecto a vossos olhos purificados; novos sentimentos
vos farão nascer novas idéias; religião, moral, poesia, arte,
linguagem, vos aparecerão sob uma forma maior e mais bela; e, de
hoje em diante certos de vossa fé, entusiastas com convicção, vós
saudareis a aurora da regeneração universal.
Nota:
[A] - O sentido ordinariamente atribuído à palavra anarquia é ausência do princípio, ausência de regra; de onde vem o que a fez sinônimo de desordem.
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Joseph-Pierre Proudhon foi filósofo, economista e político francês. Considerado o "pai do anarquismo", fundou a corrente política conhecida como Mutualismo, baseada no individualismo, federalismo, anti-estatismo e socialismo voluntário.
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Joseph-Pierre Proudhon foi filósofo, economista e político francês. Considerado o "pai do anarquismo", fundou a corrente política conhecida como Mutualismo, baseada no individualismo, federalismo, anti-estatismo e socialismo voluntário.