Escrito pelo e-zine Non Serviam
Apresentar a filosofia
de Stirner me deixou a escolha entre a brevidade ou o balanço de todas as interpretações possíveis. Eu resolvi em favor da primeira, então esteja avisado:
Esta interpretação é a de um homem só. Vá à fonte fazer
sua cabeça.
Compreender Stirner
requer não somente uma apreciação do conteúdo e de declarações
particulares, mas de um forte grau de compreensão da estrutura da
obra. De acordo com Lawrence Stepelevich, a estrutura de “O Único e Sua Propriedade” foi moldada sobre a Phänomenologie des Geistes de Hegel (Fenomenologia do
Espírito). O hegelianismo em Stirner não é acidental, mas
essencial.
É central para a escola de filosofia hegeliana o que se chama de Dialética:
Resolver dualismos encontrando um terceiro que explica/dá ambos os
lados. Stirner, nesse sentido, é um pensador dialético. Sua
principal tríade é a do Materialista – Idealista – Egoísta.
Stirner acompanha a
insistência de Feuerbach de que devemos descer a filosofia ao
individual concreto, para logo depois fazer esta insistência
voltar-se contra o “Homem” de Feuerbach, o ser da
espécie. Portanto, o capítulo 1 de O Único e Sua Propriedade, “Uma Vida
Humana”, é uma afirmação do desenvolvimento dialético tal como este ocorre na vida
concreta das pessoas; como crianças, nos encontramos no
estágio materialista e tememos o varão, como
jovens, fazemos a “primeira autodescoberta, o Espírito” e
re-obtemos o varão através do idealismo, e como
adultos, práticos, também o idealismo é
visto como um tipo de varão, e o interesse egoísta acaba por
tomar-nos. Isto não deve ser, entretanto, tomado literalmente, mas
figurativamente.
Stirner então acompanha Cieszkowski no capítulo 2, “Homens do Antigo
e do Novo Tempo”, fazendo a descrição do mesmo
desenvolvimento, mas no sentido amplo da história. O capítulo
termina com uma seção sobre os seus amigos Die Freien,
criticando-os por não representar de todo a dissolução da oposição
materialista/idealista, vindo a ser, ao invés, “os mais modernos
dos modernos”, i.e. os últimos idealistas.
“Semelhantes são
tratados da mesma maneira” é central para o estágio idealista.
Esta é a base da crítica aos Jovens Hegelianos. Pela dinâmica
interna da crítica, “semelhantes” e “a mesma maneira”
se tornam categorias sempre ampliadas, e
a “crítica” eventualmente
deve voltar-se sobre si
mesma, colapsando sob o próprio peso.
Stirner escreve: “Se
estes pressupostos tiverem de ser resolvidos numa dissolução total,
esta não deve levar de novo a um pressuposto superior, isto é,
a um pensamento ou ao próprio pensar, à crítica. Essa
dissolução só a mim deve ser útil. De outro modo, cairá na
infindável série de dissoluções […]”
Então, o colapso do
idealismo e a necessidade de uma nova síntese, é o ponto a partir
do qual a filosofia do próprio Stirner se inicia. Esta nova síntese,
entretanto, não pode ser um ponto-ideal arquimediano situado fora do
mundo, o que Stirner chama de idéia fixa. Assim, quando
se afirma o que Stirner propõe como síntese, é necessário um
pouco de cuidado.
Stirner
propõe que a síntese
encontra-se no interesse do
único – o egoísta. Enquanto
declaração isolada, tal
síntese coloca Stirner na
mesma categoria de Thomas Hobbes, Friedrich W.
Nietzsche, Dora Marsden, James Walker, Ayn Rand e Robert
Nozick.
Entretanto,
os tipos de egoísmo
propostos por estes filósofos
são notadamente diferentes do de Stirner – com uma exceção
parcial para Marsden, que foi fortemente inspirada por Stirner. A
diferença reside na visão do que é o eu mesmo, e o modo
pelo qual nos advém o egoísmo.
Façamos uma breve
descrição de alguns destes: Para Thomas Hobbes, tudo o que importa
são comparações externas de riqueza e posses. O egoísmo de
Stirner é sobre a relação do “eu” e o objeto. Na síntese de
Stirner, “eu” sou Sujeito, permanecendo em relação com o objeto
por vontade própria.
Para
Friedrich Nietzsche, há um
conjunto de metas para o
egoísta perseguir. Deve-se “criar para além de si”, criar o
Superhomem. Em contraste, Stirner foca a consumo, o transitório, a
apropriação, pelo ego finito do mundo como seu (“apropriar-se”
no mesmo sentido em que um estudante deve fazer com a literatura que
lê, “sua”, a fim de bem compreendê-la).
James Walker dá uma
descrição biológica que mais-ou-menos define o egoísmo
como qualquer coisa pela
qual o indivíduo biológico
devota sua energia, uma mecânica do egoísmo. Em
contraste, Stirner descreve o egoísmo como um caminho possível
escolhido.
Ayn Rand tenta provar o
egoísmo pelos primeiros princípios, colocando a “razão” e mais
um número de definições – a vida (enquanto do Homem) e a justiça
– como premissas. A resposta para a questão de quem é o
destinatário do trabalho do homem, Rand afirma, é o
homem ele mesmo. Agindo de acordo com a justiça – enxergando
todos os valores como instrumentais para o valor fundamental
da vida (enquanto do
Homem) – é o que
Rand define como egoísmo. Em
contraste, Stirner não “justifica”
seu egoísmo, e o “enquanto
Homem” de Rand não é nada mais do que o ser-da-espécie que
Stirner rejeitou em Feuerbach.
Então, o que é o
egoísmo stirneriano?
Como prefácio ao O
Único e Sua Propriedade, Stirner escreve um texto breve Ich
hab’ mein Sach’ auf nichts gestellt (“a
minha causa é a causa de nada”; usualmente traduzido como “todas
as coisas são nada para mim”). Neste texto breve, ele mostra
como o Sultão, Deus, o Bom, etc. não servem a nada para
além de si mesmos, e ainda colocam a si mesmos como o mais alto bem
a se servir.
Stirner escreve:
“Por mim extraio daqui uma
lição: em vez de continuar a
servir com altruísmo aqueles grandes egoístas,
sou eu próprio o egoísta”.
Então, de fato, ele
não baseia sua causa num imperativo o qual implora para que sigamos,
mas ao invés – nos seduz pelo exemplo. Isto é de importância
focal para Stirner se manter coerente e não cair
na navalha da crítica de seu contemporâneo, Karl
Schmidt, de que Stirner
estaria “fazendo uma nova
quimera” com o seu egoísmo.
O egoísmo de Stirner
vem a ser então mais uma receita terapêutica para aqueles
que querem aceitá-lo. Para
Stirner, egoísmo é somente
seguir os interesses próprios como a pessoa única que
se é. A qualquer um que diga, “Quais são meus
interesses?”, Stirner diria que o interesse dele
é tão único quanto ele mesmo, e que isso ele
mesmo deveria descobrir. Uma repetitiva insistência
nisso encontraria somente a resposta negativa que Stirner fornece em
O Único e Sua Propriedade, de que o
interesse e as idéias
fixas estão em oposição; de que não há ponto
arquimediano de referência moral externo aos valores escolhidos pelo
– único.
Então “o que sou
eu”? Isto é o que Stirner passa a segunda parte de seu livro
explorando. Isto é, o que são as minhas
relações quando elas não são deveres materiais
ou naturais, tal como lealdade filial
ou relações idealistas como ser “um e o mesmo”
como cidadão, mendigo ou Humano? O conceito chave para
responder isto, é Eigentum – propriedade.
“Eigentum“,
ou aquilo que é possuído, exprime para Stirner uma relação de
vontade. Como uma relação de vontade, pode
ser descartada a qualquer momento – pela vontade.
Oposta à relação de vontade está o dever, o “dever” e o “ter
de”. Estas são simplesmente relações que não são minhas
para que eu possa dispor, mas que são me dadas de fora – de fora,
também, no sentido de uma “essência” que eu devo confirmar sem
que possa dispor sobre ela.
Um caso particular de
tal dever é quando não se pode abandonar uma idéia. Em termos
hegelianos: Quando aquele pensamento é visto como sagrado e isento
ao “poder do negativo”. Tal idéia é chamada de idéia fixa.
Isto é, nas palavras de Stirner “Uma idéia que sujeitou o homem a
ele mesmo” – uma idéia que você não pode criticar.
A noção
de “Eigentum” aplica-se
também às relações com outras
pessoas, e é nesse sentido que devemos entender Der
Verein der Egoisten (A Associação dos
Egoístas) que confundiu e iludiu
a compreensão de muitos comentadores.
Vamos dar uma olhada
nos modos pelos quais eu posso me encontrar com outra pessoa, desde
um ponto de vista pertinente ao assunto em questão.
1. O dever. Isto é um encontro entre duas pessoas de acordo com
como devem se comportar em relação à outra. Este
não é um encontro por vontade, mas um encontro de acordo com o
“dever”. Exemplos de tais encontros são quando pai e filho
encontram-se nos papéis de pai e filho. Quando eles
se encontram, de acordo com tais papéis, encontram-se por um dever e
não por uma “vontade”. Papéis são atribuídos a uma relação
quando esta é vista como objeto estático.
2. A Propriedade. A
relação pode ser de vontade unilateral. Assim, se se é
um Einzige ao passo que o Outro se torna
um Eigentum (para aquele que é Einzige).
Talvez, seja este o estado de coisas em que podemos dizer “O
Inferno São Os Outros” (i.e. quando aquele Outro cara é
o Einzige e o eu é reduzido ao papel de Eigentum).
Moses Hess
já criticava a concepção
daquilo que Stirner chama
de “Verein der Egoisten” ["A Associação dos
Egoístas"] seguindo a linha de que num tal
encontro, teria de haver um dominador
e um outro submetido à dominação. Isto é, Hess
imagina que “A Associação dos Egoístas” seria uma relação do
tipo (2) descrita acima. Agora, (2) pode descrever um
egoísta Hobbesiano. Mas pode
descrever “la derniere mallon de la
chaine Hegelienne” [o último elo da corrente hegeliana] (como
Stirner foi chamado)? Não, isto é um pouco rude demais.
Stirner ele mesmo fez a réplica desta crítica apontando para
exemplos: Dois amigos brincando com seus brinquedos, dois homens
que, vão juntos a loja de vinhos. Certamente
esta não é uma lista exaustiva de associações, e nosso homem
Stirner, de fato, fala sobre associações
consistindo em centenas de
pessoas, também, associações que se formam para se
capturar um ladrão ou para ganhar salários melhores
no próprio trabalho. Mais
filosoficamente, Moses Hess descreveu uma unilateralidade,
e pensou que isso era necessário para a
relação. O que de mais
natural do que aplicar
um pequeno argumento dialético para resolver o que Stirner
realmente quis dizer. Eu proponho isto:
3. A Associação.
A relação é compreendida como um
processo. É um processo em que as relações são
continuamente renovadas por ambas [/todas] as
partes sustentando-a através
de um ato de vontade.
A Associação requer que ambas/todas as partes estejam presentes
através do egoísmo consciente
– i.e. da vontade
própria. Se uma parte,
silenciosamente encontra-se em sofrimento, mas se contém para salvar
as aparências, a associação degenerou a uma outra coisa qualquer.
Somente após desenvolver a compreensão de associação de egoístas
é que Stirner chega à relação sumamente
importante – minha relação comigo mesmo. Na
seção intitulada “O meu gozo pessoal”, Stirner
distingue a mera valorização da vida contra o gozo
de vida. Na primeira visão, eu sou um objeto a ser preservado.
Na segunda, eu vejo a mim mesmo como sujeito de todas
minhas relações de valor.
Nesse
sentido, Stirner pode rechaçar
a questão “o que
sou eu?” e recolocá-la em termos de “quem
sou eu?”, uma questão que guarda a resposta na mesma pessoa
encarnada que a interroga. Este é o “nada” do qual Stirner fala
como sendo o eu. “O nada que sou não é no sentido de vacuidade,
mas antes o nada criador”.
A minha relação
comigo é assim um encontro comigo por vontade, uma associação
comigo mesmo e um consumo – apropriação – de mim como o meu
próprio.
Leitura sugerida:
Kleinere Schriften – Max Stirner
Stirner Studien (Bernd
Laska)
N.T: Termos e trechos
conforme a tradução de Barrento, Ed. Antígona.
Traduzido por José Paulo M. Souza