terça-feira, 28 de maio de 2013

Henry David Thoreau


Por Jim Powell

Se jamais houve um verdadeiro individualista, foi Henry David Thoreau. Como lembrou seu amigo, o poeta, ensaísta e filósofo Ralph Waldo Emerson, “ele não foi feito para nenhuma profissão; nunca se casou; viveu sozinho; nunca foi à igreja; nunca votou; recusava-se a pagar tributos ao Estado; não comia carne; não bebia vinho; nunca conheceu o uso do tabaco; e, embora fosse um naturalista, não usava armadilha ou arma. Ele escolheu, sabiamente para si mesmo, sem dúvida, ser bacharel do pensamento e da natureza. Ele não tinha nenhum talento para a riqueza, e sabia ser pobre sem o menor sinal de sujeira ou deselegância”. Emerson poderia ter acrescentado que Thoreau condenou a guerra e ajudou escravos fugidos. O poeta americano Walt Whitman confidenciou que “uma coisa em Thoreau o mantém muito próximo de mim: refiro-me à sua falta de leis – sua discordância – o fato de seguir absolutamente seu próprio caminho, quaisquer que sejam as consequências”.
Durante a curta vida de Thoreau, apenas dois dos seus livros foram impressos: A Week on the Concord and Merrimack Rivers [“Uma semana nos rios Concord e Merrimack”] (1849), que vendeu cerca de trezentas cópias, e Walden (1854), que vendeu pouco menos de duas mil cópias. Ainda assim, como escreveu o historiador Samuel Eliot Morison sobre uma das obras de Thoreau publicadas postumamente, “Desobediência civil (…) tornou-se a obra de literatura americana mais conhecida por pessoas lutando por liberdade na Ásia e na África, e alcançou a honra de ter sua venda proibida em países comunistas”. Seus escritos foram traduzidos para tcheco, dinamarquês, holandês, francês, alemão, hebreu, japonês, russo, sueco e ídiche, dentre outras línguas. Em The Importance of Living [“A importância de viver”], o filósofo Lin Yutang escreveu, “Thoreau é o mais chinês de todos os autores americanos em toda a sua visão da vida. (…) Eu poderia traduzir passagens de Thoreau para a minha língua e fazê-las se passar por escritos originais de um poeta chinês, sem levantar qualquer suspeita”.
Walter Harding, que foi por muito tempo o principal especialista em Thoreau, observou em 1963 que “cem anos atrás Henry David Thoreau era visto como um discípulo menor de Ralph Waldo Emerson. Cinquenta anos atrás se pensava que ele fosse um azarão que estava rápida e merecidamente em vias de ser esquecido. Hoje ele é amplamente cotado como um dos gigantes no panteão americano e sua fama é mais crescente do que decrescente. Há um consenso sobre o fato de que ele diz mais ao nosso tempo do que aos seu próprio”.
Ele expressou princípios importantes do individualismo com propriedade e paixão, e rejeitou alegações de que os indivíduos deveriam ser leais a uma autoridade coletiva. “Sou mais zeloso do que de costume no diz respeito à minha liberdade”, escreveu. “Sinto que a minha ligação e obrigação para com a sociedade são ainda muito pequenas e transitórias”. Ele acreditava haver um imperativo moral para que cada um cuidasse de sua própria vida: “Quanto a fazer o bem, esta é uma das profissões mais saturadas. Além disso, eu tentei regularmente, e, por estranho que possa parecer, estou satisfeito por isto estar em desacordo com minha constituição”. Ele não tinha nenhuma ilusão em relação ao governo. “Eu vi que o Estado era burro”, relatou, “e perdi todo o respeito que ainda tinha por ele”. Ele insistia que para alcançar a dignidade humana, as pessoas devem ser responsáveis por suas próprias vidas e manter sua independência, que é diminuída pelas esmolas governamentais. Ele demonstrou corajosa teimosia ao insistir em suas opiniões rebeldes, apesar de ser às vezes ridicularizado como se fosse excêntrico. Ele parecia falar pelos individualistas de todos os cantos quando escreveu: “se um homem não segue o passo dos seus companheiros, talvez seja porque ele ouve uma batida diferente. Deixem-no seguir os passos da música que escuta, seja seu ritmo regular ou não”.
Thoreau tinha cerca de um metro e setenta, e, disse Emerson, “bom físico, pele clara, sérios e fortes olhos azuis, e um aspecto grave”. Dentre outras coisas, Emerson admirava por Thoreau ser alguém que gostava de viver ao ar livre: “Ele usava chapéu de palha, sapatos grossos, resistentes calças cinzas, para enfrentar pequenos carvalhos e trepadeiras, e para escalar árvores em busca de ninhos de águias ou esquilos. Ele se metia dentro do lago atrás de plantas aquáticas, e suas fortes pernas formavam parte não insignificante de sua armadura”. De acordo com o biógrafo Carlos Baker, Thoreau “tinha cabelos castanhos, abundantes e de textura fina. (…) [Seus] braços eram grossamente emaranhados de pêlos, como o couro de um animal (…) [Seu nariz], curvado para baixo em formato de gancho, lembrando de certo modo o bico de uma ave de rapina. (…) [Seus olhos] com frequência luziam com uma luz cinzenta gelada”.
Ele nasceu David Henry Thoreau em 12 de julho de 1817 na casa de sua avó viúva, na Virginia Road, em Concord, Massachussets. Era filho de John Thoreau, um lojista falido que se tornou fabricante de lápis. Sua mãe, Cynthia Dunbar, era filha de um ministro Congregacionista.
Henry D. Thoreau
Apesar dos tempos difíceis, os pais de Thoreau ofereceram-lhe a oportunidade de frequentar boas escolas. Ele estudou na Concord Academy, uma escola privada considerada melhor do que as escolas públicas, e entrou para o Harvard College em 9 de agosto de 1833, quando tinha dezesseis anos.
Depois de se formar, mudou seu nome para Henry David Thoreau e assumiu um cargo de professor na Center School, uma escola de Ensino Fundamental em Concord. Aparentemente havia uma certa preocupação em relação à disciplina, e o clérigo local lhe disse que ele deveria açoitar seus estudantes. Mas Thoreau decidiu que não poderia aceitar a prática do açoitamento e decidiu sair. Ele e seu irmão John começaram uma escola em Parkman House, na Main Street, posteriormente o lar da biblioteca pública de Concord. A escola prosperou sem açoitamento.
No final de 1837, Thoreau conheceu Emerson, na época com trinta e quatro anos. O biógrafo Ralph Rusk assinalou que a “magreza de seu corpo, acentuada por seu metro e oitenta de altura, (…) os ombros estreitos e curvados, (…) sua cabeça dava a impressão de firmeza. Seu cabelo grosso e castanho, (…) suas curtas e discretas suíças emolduravam parte de uma fisionomia forte e penetrantes olhos azuis”. Nascido em Boston em 3 de maio de 1803, o ex-aluno de Harvard Emerson desenvolveu a filosofia mística do transcendentalismo, explicada em seu ensaio principal, “Nature” [“Natureza”] (1836). Seus ensaios mais duradouros foram “Self-Reliance” [“Autodependência”] e “Compensation” [“Compensação”]. Os escritos de Emerson eram abundantes em epigramas – por exemplo, “Quem deseja ser um homem, deve ser um não-conformista (…) Nada pode trazer-lhe paz senão você mesmo (…) O caráter é superior ao intelecto (…) A única maneira de ter um amigo é ser um (…) Nada de grandioso jamais foi alcançado sem entusiasmo (…) Autodependência, estatura e perfeição do homem (…) Faça-se necessário a alguém (…) A recompensa por algo bem feito é tê-lo feito (…) Nada surpreende os homens tanto quanto o bom senso e o trato franco (…) Quanto menos governo tivermos, melhor (…) Grandes homens são aqueles que enxergam que o lado espiritual é mais forte do que qualquer coisa”.
Thoreau mostrou a Emerson seu diário que um de seus professores na Harvard, William Ellery Channing, o havia incentivado a escrever. Ele havia começado a escrever em outubro de 1837, e isto se tornou uma maneira importante de desenvolver seus pontos de vista e a prática de expressá-los. Aparentemente Emerson ficou impressionado com o dom de Thoreau para a expressão e convidou-o para participar dos encontros literários conhecidos como Clube Transcendental, na casa de Emerson em Concord.
Em 1839, Henry e John Thoreau saíram por treze dias em viagem de barco pelo Rio Concord e pelo Rio Merrimack, experiência que ganhou especial significado após a morte de John por tétano em 1842. Henry resolveu escrever um livro sobre os bons tempos passados em companhia de seu irmão, mas decidiu que não poderia trabalhar em meio a tantas distrações em casa. Desta maneira, entre 4 de julho de 1845 e 6 de setembro de 1847 ele viveu na propriedade de Emerson no Lago Walden, ao sul de Concord. O Lago Walden tinha cerca de três quartos de milha de comprimento e meia milha de largura. Com um machado emprestado, Thoreau construiu uma cabana lá. Ele certamente não se isolou da civilização, como reza a lenda. Se enxergava a estrada Concord-Lincoln do seu campo, a Ferrovia Fitchburg passava pelo outro lado do Lago Walden, sua mãe e suas irmãs traziam-lhe tortas e rosquinhas, ele continuou indo jantar em casas de amigos, tinha frequentes visitantes, e em mais de uma ocasião, sua cabana serviu de estação na “Ferrovia Subterrânea”, servindo de abrigo para escravos fugidos. Thoreau ganhou dinheiro trabalhando como carpinteiro, pintor e vigilante.
Durante seu segundo ano na floresta, ele teve mais tempo para escrever. Finalizou seu primeiro livro, o tributo ao irmão, A Week on the Concord and Merrimack Rivers[“Uma semana nos rios Concord e Merrimack”], mas aparentemente não foi capaz de atrair o interesse de nenhuma editora comercial, pois conseguiu que fossem impressas somente mil cópias em 1849. Ele precisou de vários anos para quitar a dívida, e as cópias não vendidas acabaram indo parar no sótão da casa dos seus pais.
As pessoas queriam saber por que alguém formado em Harvard viveria sozinho na floresta, e em 10 de fevereiro de 1847 ele deu uma palestra, “Uma história de mim mesmo”, no Liceu Concord. A audiência adorou-o. Emerson disse a Margaret Fuller que as pessoas vieram “para ouvir os relatos da vida de diária de Henry no Lago Walden, lidos por ele como uma palestra, e ficaram fascinadas pela sua sabedoria sagaz que compreendia tudo”.
"'Desobediência Civil' tornou-se a obra de literatura americana mais conhecida por pessoas lutando por liberdade na Ásia e na África, e alcançou a honra de ter sua venda proibida em países comunistas."
Quando ele se cansou da floresta, foi viver na casa de Emerson. Lá ele escreveu uma longa carta sobre suas experiências e reflexões em Walden a Horace Greeley, editor do New York Tribune, que publicou-a na edição de 25 de maio de 1848. Após dois anos na casa de Emerson, Thoreau foi ajudar seu pai com a fábrica de lápis e viveu na casa de seus pais, que foi onde ele converteu a carta em Walden. O livro foi lançado em 1854 pela editora Ticknor & Fields.
Há muito do estilo epigramático de Emerson em Walden. O livro contém diatribes contra a competição empresarial, que havia salvo da fome multidões por todo o mundo, mas o insistente individualismo de Thoreau faz uma bela música. Dentre suas frases mais memoráveis estão: “ame sua vida”, “deixe que cada homem cuide de sua própria vida e se empenhe para alcançar o que deve”, “se alguém avança confiantemente em direção aos seus sonhos, e se esforça para viver a vida com que sonha, vai alcançar o sucesso”, “eu tinha três cadeiras em minha casa; uma para a solidão, duas para a amizade e três para a sociedade”, e “se eu soubesse que um homem estivesse vindo à minha casa com o intento consciente de me fazer o bem, eu fugiria correndo”.
Nesta época, Thoreau havia se rebelado contra os tributos. Em 1840, alguém adicionara seu nome à lista de membros da First Parish Church de Concord, e o tesoureiro da cidade exigiu que Thoreau pagasse o dízimo. Quando ele se recusou a pagar, funcionários públicos ameaçaram prendê-lo. Thoreau exigiu que seu nome fosse retirado da lista de membros da igreja. “Eu, Henry Thoreau,”, escreveu, “não desejo ser considerado membro de nenhuma sociedade à qual eu não tenha me associado”.
Em 1845 e em 1846, os Estados Unidos anexaram o Texas, e o Presidente James K. Polk provocou guerra contra o México. A guerra era especialmente popular no Sul, pois o Texas tinha terra para se plantar algodão e açúcar, o que significava mais territórios pró-escravidão.
Thoreau recusou-se a pagar a capitação, já que significava colaborar com um governo imoral, e em julho foi mandado à cadeia de Concord na Mill Dam Road. Alguém (provavelmente sua Tia Maria) pagou seus tributos e ele ficou preso somente por uma noite – ele esperava ficar mais tempo como protesto contra a guerra e a escravidão. Para explicar suas opiniões sobre os impostos, Thoreau redigiu um ensaio, o qual apresentou no Liceu Concord em 26 de janeiro de 1848. Cerca de um ano depois, Elizabeth Peabody pediu-lhe permissão para publicá-lo em um novo jornal, Aesthetic Papers, aparecendo (pela primeira e última vez) em 14 de maio de 1849. “Resistence to Civil Government” [“Resistência ao governo civil”], o artigo de Thoreau, não perdeu tempo, indo direto ao ponto logo nas primeiras linhas: “Aceito entusiasmadamente o lema ‘o melhor governo é o que governa menos’, e gostaria de vê-lo em prática rápida e sistematicamente. Levado a cabo, logo se chegaria a isto, em que eu também acredito: ‘o melhor governo é o que simplesmente não governa’; e quando os homens estiverem preparados para isto, este será o tipo de governo que eles deverão ter”. “Acho que devemos ser homens primeiro, e súditos depois”, continuou. “Não é tão desejável que se cultive um respeito pela lei, mas sim pelo que é certo. (…) Leis nunca tornaram ninguém mais justo; e, para respeitá-las até mesmo os mais bem-dispostos se tornam diariamente agentes da injustiça”. Acrescentou: “Não nasci para ser forçado. Respirarei segundo minha própria vontade. (…) Não haverá um Estado livre e esclarecido de verdade até que o Estado venha a reconhecer o indivíduo como um poder individual superior, do qual todo o seu poder e autoridade derivam, e trate-o de acordo”.
Revoltado com o auxílio do governo estadual de Massachusetts em aplicar a Lei do Escravo Fugitivo de 1850, Thoreau deu uma palestra na Convenção Anti-Escravidão em Framingham, Massachussets, em 4 de julho de 1854, publicada como “Escravidão em Massachussets” no jornal Liberator, de William Lloyd Garrison, em 21 de julho de 1854. “As leis do Estado”, afirmou, “nem sempre dizem o que é verdade; e nem sempre querem dizer o que dizem. (…) O que é necessário são homens que reconheçam uma lei superior à Constituição ou à decisão da maioria. (…) Que o Estado dissolva sua união com o dono de escravos. (…) Que cada habitante do Estado dissolva sua união com ele caso ele não cumpra com o seu dever”.
Thoreau depois defendeu o agitador abolicionista John Brown, que, convencido de que os escravos só seriam libertos por meio da rebelião armada, capturou o arsenal federal em Harper’s Ferry, Virginia, em 16 de outubro de 1859. Thoreau ficou perturbado pela violência, mas ainda mais perturbado por nenhum outro abolicionista ter defendido a intenção de Brown em libertar os escravos. Em 30 de outubro de 1859, quando Brown ainda estava na cadeia, Thoreau esteve na prefeitura de Concord, onde chamou Brown de “o homem mais bravo e humano em todo o país”.
"'Desobediência Civil' circulou entre resistentes à ocupação nazista na Europa, e se tornou panfleto de comícios."
Walter Harding relatou que “durante toda sua vida adulta, Thoreau sofreu de tuberculose intermitentemente. Em dezembro de 1860, teve bronquite, que piorou a tuberculose. Morreu perto das nove horas da noite de 6 de maio de 1862. Tinha apenas 44 anos. Sua mãe, irmã e Tia Louisa estavam com ele. O velório, três dias depois, na First Parish Church de Concord, estava lotado. A autora Louisa May Alcott assinalou que “embora ele não tenha recebido grande reconhecimento enquanto vivo, foi honrado em sua morte”. E, tratando-se de um autor sem nenhuma obra publicada, a morte de Thoreau foi amplamente noticiada. Houve notícias no Boston Daily Advertiser, no Concord Monitor, no Boston Transcript, noChristian Register, na Harvard Magazine, no Liberator , no Saturday Evening Post, no New York Tribune, no Harper’s Monthly e na Atlantic Monthly, dentre outros.
Thoreau morreu obscuro. “O mundo decidiu”, escreveu o historiador Perry Miller, “que ainda que Thoreau lhe incomodasse, ele figuraria como um naturalista menor em uma literatura onde os gigantes eram Irving, Longfellow, Lowell e Dr. Holmes. Quanto às idéias de Thoreau, este mesmo mundo presumiu que o pouco por ele demonstrado fora emprestado de Emerson e declarou que elas eram reproduzidos com uma desajeitada estranheza que, talvez momentaneamente atraente, traía sua rusticidade”.
Thoreau deixou para trás milhares de páginas e manuscritos incompletos. Sua irmã Sophia juntou-os em Excursions [“Excursões”] (1863), e trabalhou com Ellery Channing para editar The Maine Woods [“As Florestas de Maine”] (1864) e Cape Cod (1865). Emerson editou < em>Letters to Various Persons [“Cartas a várias pessoas”] (1865). Yankee in Canada, with Anti Slavery and Reform Papers [“Um ianque na Canadá; escritos abolicionistas e reformistas”] saiu em 1866. Embora estes cinco volumes estivessem incompletos e cheios de erros, eles acumularam ao menos trinta e seis revisões e ajudaram a assegurar a reputação literária de Thoreau. Havia tanta demanda por seus trabalhos que a Houghton Mifflin lançou a vigésima edição de “Walden” em 1906.
O ensaio de Thoreau “Resistência ao governo civil” é uma história em si mesmo. Em 1866, quatro anos após a sua morte, foi reintitulado “On Civil Desobedience”[“Sobre a desobediência civil”] e foi reunido em um livro junto com seu Yankee in Canada, with Anti Slavery and Reform Papers. Poucas pessoas fora dos Estados Unidos pareciam apreciar os escritos naturalistas de Thoreau, mas Desobediência Civil tornou-se um grito de guerra. O romancista e filósofo russo Leon Tolstoy ficou impressionado e citou Thoreau dentre os autores que “me influenciaram especialmente”. Tolstoy incluiu muitas seleções de Thoreau em sua antologia Um círculo de leitura.
Walter Harding, biógrafo de Thoreau, descobriu que “tem havido um interesse de longa data em Thoreau por parte dos judeus. Desobediência civil foi traduzido para ídiche em Nova York em 1907 e posteriormente em Los Angeles em 1950. Tem havido artigos frequentes sobre Thoreau em ídiche em jornais de todo o mundo”.
Quando Mohandas Gandhi estava estudando Direito na Inglaterra, conheceu Henry Salt, biógrafo de Thoreau. Por volta de 1907, Gandhi se opunha a leis na África do Sul que impediam que indianos viajassem, comerciassem e vivessem livremente, e um amigo lhe deu uma cópia de Desobediência civil, que ele leu enquanto esteve preso por três meses em Pretoria. Ele reconheceu que “as idéias de Thoreau me influenciaram grandemente. Adotei algumas delas e recomendei o estudo de Thoreau a todos os amigos que me ajudavam na causa da independência da Índia. O nome do meu movimento foi retirado do ensaio de Thoreau Sobre o dever da desobediência civil. (…) Até ler aquele ensaio, nunca havia encontrado uma tradução em apropriada em inglês para a palavra indiana Satyagraha. (…) Não há dúvidas de que as idéias de Thoreau influenciaram enormemente meu movimento na Índia”. Harding relatou que Gandhi “sempre carregou uma cópia [de Desobediência civil] consigo nas várias vezes em que foi preso”. Havia um panfleto em Nova Délhi, Henry David Thoreau: The Man Who Moulded the Mahatma’s Mind [“Henry David Thoreau: o homem que moldou as idéias do Mahatma”].
"Thoreau recusou-se a pagar a capitação, já que significava colaborar com um governo imoral, e em julho foi mandado à cadeia de Concord na Mill Dam Road. Alguém pagou seus tributos e ele ficou preso somente por uma noite – ele esperava ficar mais tempo como protesto contra a guerra e a escravidão."
O historiador Peter Miller observou que Desobediência civil circulou “entre resistentes à ocupação nazista na Europa, e se tornou panfleto de comícios”. De acordo com Harding, “líderes do movimento de resistência dinamarquês viram Desobediência civil como um manual de guerra”.
Quando Martin Luther King Jr. estava prestes a lançar o movimento pelos direitos civis com protestos não-violentos contra a segregação racial apoiada pelo governo em Montgomery, Alabama, ele começou “a pensar a respeito do Ensaio sobre a desobediência civil, de Thoreau. Lembro de como a leitura deste artigo mexeu comigo quando eu estava na faculdade. Convenci-me de que aquilo que nós estávamos preparando para fazer em Montgomery tinha relação com o que Thoreau havia expressado. Nós estávamos apenas dizendo à comunidade branca, ‘Nós não podemos mais cooperar com um mau sistema’”.
Em 1965, um grupo de acadêmicos liderados por Walter Harding começou a trabalhar em The Writings of Henry D. Thoreau [“Os escritos de Henry D. Thoreau”], a coleção definitiva de seus trabalhos, e buscaram manuscritos em mais de 40 bibliotecas; os maiores acervos se encontram na Houghton Library (Universidade de Harvard), na Huntington Library (San Marino, California), na J. Pierpont Morgan Library (Nova York) e na New York Public Library. Estes manuscritos foram laboriosamente transcritos. Um editor notou que “Thoreau escrevia com uma forte inclinação para direita. (…) Algumas de suas letras se parecem muito, especialmente o ‘r’, o ‘s’ e o ‘z’. Para piorar ainda mais, Thoreau cometia erros ortográficos e gramaticais com frequencia. (…) Ele também escrevia palavras juntas, o que torna às vezes difícil definir quando uma palavra termina e outra começa”. A Princeton University Press lançou a primeira edição (Walden) em 1971; catorze edições se seguiram desde então, e o projeto continua.
O historiador Miller observou que Thoreau, “se tornou um deus da literatura moderna. Onde quer que se leia em inglês, ou ele possa ser traduzido, Thoreau é uma das principais vozes do século XIX, que fala para o século XX na Índia, no Japão e na África Ocidental tanto quanto nos Estados Unidos, com mais e mais ressonância. (…) O discípulo agora brilha mais forte que o mestre: Thoreau esta mais vivo na estima popular que Emerson, e Longfellow, Lowell e Holmes se tornaram passatempos de antiquários”.
A tendência recente tem sido enfatizar os escritos naturalistas de Thoreau acima de tudo, sem dúvidas por consequência do movimento ambientalista. A aclamada série Library of America, por exemplo, lançou uma edição de 1.114 páginas de Thoreau que não incluiu uma única página sobre seus escritos políticos. Ainda assim, para as pessoas que valorizam a liberdade, estes escritos colocam Thoreau dentre os imortais. Ele afirmou o imperativo de julgar as leis de acordo com princípios morais e, quando necessário, permanecer sozinho contra o Estado.
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Jim Powell, senior fellow do Cato Institute, é especialista na história da liberdade. Seu livro mais recente é Greatest Emancipations: How the West Abolished Slavery.


Publicado no site Ordem Livre

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segunda-feira, 20 de maio de 2013

Entrevista a Roberto das Neves, Anarquista Individualista, Escritor e Editor


Publicado originalmente na revista Planeta nº 104, Maio de 1981.


Por Flamínio Araripe


A trajectória deste incrível anarquista, individualista (no bom sentido), escritor e editor, deixa-lhe à vontade para repensar toda a história dos movimentos políticos, religiosos e das mais recentes trilhas e saídas existenciais da sociedade xarope contemporânea.

Roberto das Neves, 73 anos de idade, vegetariano desde os 16, português de nascimento, lutou na Revolução Espanhola, foi inimigo de Salazar (13 honrosas prisões), crítico do marxismo e defensor do socialismo libertário: este é o tipo de agitador que faz falta hoje. Ele ama as utopias e tem um saudável desprezo pelas instituições — por todas.

Amanhecer na Zona Norte do Rio de Janeiro. No bairro de Lins,o hospital da Marinha recebe os primeiros visitantes do dia. Sobem a rampa aventais brancos de médicos e enfermeiros, uniformes azuis e algum outro paisano sonolento. Perto dali me espera o poeta, editor e escritor individualista anarquista Roberto das Neves.
Há dois anos não o vejo. Soube que de saúde ele passa bem. Talvez o vegetarianismo que segue desde os 16 anos seja a razão de suas 73 primaveras lúcidas. Na calçada do prédio onde mora este português magrinho cujo exílio o fez carioca há mais de 30 anos, sob os raios de sol da manhã alguns velhos de bermudas conversam e aquecem o couro da barriga.

Quando toco a campainha do apartamento, o chumaço de papel que substitui o olho mágico mostra os olhos claros do poeta amante da liberdade. Vejo-o, alegre, com a mesma presença de espírito, ágil, convidar-me a entrar. Roberto conserva todo o vigor satírico de sua personalidade, confirmo ao receber de suas mãos um texto sobre a história das utopias que havia preparado na véspera para "poupar maçadas". Mesmo assim instalo o gravador diante dele.

Roberto mora hoje com o seu filho, e aquela que ele chama "minha companheira" há três anos partiu. Ele parece gostar do garoto, que tem seu mesmo nome e saiu para se matricular na universidade, onde passou "com distinção" no curso de jornalismo. Noto que a pequena sala do apartamento conta com seis estantes a menos. Ficaram apenas duas delas com obras em Esperanto – que é professor —, dicionários e clássicos do anarquismo, raridades em espanhol, francês, italiano e português. Todos livros amarelados, dos autores de sua predilecção: Han Ryner, E. Armand, Maria Lacerda de Moura e pensadores socialistas libertários, além de muita coisa sobre grafologia e dietética.

Parece que o lugar de actuação em múltiplas actividades de Roberto cedeu espaço para uma outra função por mim desconhecida em sua vida. Não vejo mais o arquivo com cartas coleccionadas, e a mesa grande da sala entulhada de jornais anarquistas de todo o mundo já não está mais ali, embora encontre exemplares dispersos pelo apartamento. O ambiente perdeu aquela atmosfera de saudável ebulição que ficou gravada em mim na primeira visita. Ante a janela agora é o local de trabalho dele, onde nos sentamos numa mesinha amontoada de papéis sob a qual vejo espalhados envelopes do ano passado, onde certamente os leitores solicitavam livros de sua editora, a Germinal.


A importância da utopia na história

Por enquanto Roberto não edita mais. Reclama do preço do livro hoje, que "o público não lê mais, no Brasil, principalmente", embora ainda tenha obras para editar. Uma delas, cuja tradução afirma estar pronta, é “Formas de Vida em Comum sem Estado nem Autoridade”, de E. Armand, a proposta que mais se identifica com a sua. Este texto tem muito a ver com a Germinal: conta as experiências práticas de comunas livres na Europa, em moldes individualistas anarquistas.

No espaço ocupado por sua editora é exercida urna actividade libertária que abrange o combate ao fumo, às doutrinas obscurantistas, ao poder, seja capitalista ou estatal, ao marxismo – "escola de ditadores" — e que é a favor do naturismo, contra a alopatia.

O escrito com que Roberto aguardou a minha presença se chama Breve História das Utopias e Colónias Experimentais Socialistas no Mundo e no Brasil.
Começa citando o historiador Max Nettlau, "o Heródoto do anarquismo", que disse do género tão escarnecido por Karl Marx e Friedrích Engels: "Facilmente se desprezam as utopias, consideradas por muitos como inúteis, ilusórias, contrárias à realidade e à ciência. Guardemo-nos de seguir essas vozes secas e utilitárias. O mundo é bastante pobre, tal como hoje se encontra, e por isso toda utopia é uma das mais belas e raras flores. O homem é verdadeiramente pobre se não afaga um sonho, se não leva no cérebro a eterna utopia de um ideal, colectivo ou individual, concebido na sua primeira juventude, construção muito variável, à qual acrescenta modificações em cada etapa de sua evolução moral e intelectual, que cresce, envelhece e morre com ele. Que vacuidade a do cérebro que não a conhece e que, por orgulho, resignação ou mera vulgaridade absoluta, não pensa mais além do presente! Pelo contrário, o carpediem vale sempre, mas os que estão absolutamente por ele são seres tão incompletos como os que vivem exclusivamente no sonho, na utopia."

Agora, com o texto manuscrito de Roberto das Neves, extraído de seu Marxismo, Escola de Ditadores: "A utopia é mais que um género literário, um fenómeno social de todas as épocas e uma das mais antigas formas de progresso e de rebeldia fecundante e renovadora. Porque o anseio que o homem sente – de elevar-se acima de um presente cinzento, sombrio ou injusto, só aceitável para o tirano, o usurpador, o explorador de seus semelhantes e para os homens sem horizontes, membros do panegírico rebanho humano —, converte-se em reflexão sobre o futuro, em visão do que poderá fazer-se e, finalmente, em dação, trabalho, investigação, e experiência."

Acrescenta que "nem sempre, porém, só a utopia vara as nebulosas do porvir". Porque às vezes "também a fantasia popular auxiliada pelo espectáculo dos homens primitivos", quando não havia "espoliação, restrições e repressões, se remetia a um estado de justiça, abundância e felicidade do passado". Segundo ele, é o caso da Idade de Ouro e do Paraíso, as primeiras utopias.

Roberto enumera em seguida várias criações ligadas à utopia, na literatura e na prática. Cita Platão, Rabelais, Thomas Campanella, Francis Bacon, Fenelon, Fontenelle, Montesquieu, Rousseau, Voltaire, entre outros. Menciona ainda Robert Owen e Thoureau — "verdadeiro individualista que vive a vida nos bosques" —, Tony Mollin, "mártir da Comuna de Paris, fuzilado nos Jardins de Luxemburgo", Luisa Michel, Etienne Cabet, James Guilhaume e Kropotkin.

Roberto das Neves


Frutos maduros do sonho e o encontro com Ramatis

Para ele, a relação entre os motivos que impulsionavam as primeiras comunas e as iniciativas feitas nesse sentido actualmente é nítida: "Um regime libertário, sem o dinheiro, a propriedade individual, sem autoridade do homem sobre o seu semelhante e em regime de amor livre". Quer dizer: "Sem Estado, sem tribunais nem prisões".

A ideia-motor na crítica da sociedade actual neste individualista anarquista, assim como a base que norteia todas associações de carácter libertário, sempre é criar condições para vigorar o livre auxílio mútuo na condução dos assuntos colectivos. Com isto, visa-se preservar a soberania do indivíduo, considerado como pedra fundamental da sociedade. O libertário Roberto chega a admitir trabalhar em conjunto por um ideal revolucionário, desde que as bases do acordo para atuar em comum satisfaçam-lhe a integridade individual.

O manuscrito de Roberto defende em seguida a "Colónia Cecília", comuna de imigrantes italianos que durou 10 anos, cujo fim deveu-se à República, "mais reaccionária que o Império com D. Pedro II", de vez que resolveu cobrar impostos dos anarquistas. O mesmo texto toca, também, nas obras mediúnicas de Emmanuel, psicografadas por Francisco Cândido Xavier (Há Dois Mil Anos), e Hercílio Mães, Ramatis (Viagem ao Planeta Marte), por "reflectirem a aspiração ideal de nossa época, sem exércitos nem Estado, onde os povos se entendam por meio de um idioma comum".

Segundo ele, Ramatis o visitou e ambos encontraram pontos de aproximação entre a utopia mediúnica e a doutrina anarquista. Até no vegetarianismo estão de acordo. Mas a comunhão torna-se maior nesse "idioma comum", que imediatamente significa, para o individualista libertário, o universal esperanto. À medida que vê Ramatis reconciliar o ponto de vista espiritualista e anarquista, acusa Chico Xavier de reaccionário, embora não o tenha conhecido pessoalmente, "só de leituras".

O empreendimento autogestionário existente no município de Boa Esperança (ES) desperta-lhe entusiásticos elogios em sotaque luso. Não é por menos: do estado de falência decretada, até o posto de 22ª melhor renda entre as prefeituras brasileiras — o soerguimento da economia com base no auxilio mútuo –, é um feito de orgulhar qualquer anarquista. O bem-estar colectivo atesta o valor duma organização descentralizada e cooperativa, com solidariedade prática, o que fez com que "o poder político fosse transferido da prefeitura para as comunidades e respectivas assembleias, deixando a sede municipal de ser agência de empregos para parentes e amigos da administração".

Esta comprovada experiência do município capixaba, para Roberto, "é anarquista, embora seus organizadores não saibam disso. Pode não ter o nome de anarquia; isso não importa. Nem tudo o que tem o nome de anarquista é anarquista. E muita coisa sem esse nome é autenticamente anarquista."

"O que importa é que são focos de irradiação de novas doutrinas, de novos planeamentos."


Receita antitabagismo e toques sobre LSD

Na prática quotidiana de Roberto, porém, o seu desempenho deu-se predominantemente sozinho, na edição de livros e na pregação vegetariana com recomendações dietéticas em que responsabilizava sempre o Estado e o capitalismo pelos males da humanidade. De um panfleto de sua autoria a favor do naturismo:
"O vegetariano, revolucionário de uma revolução sem sangue, que conseguiu fortalecer a sua vontade e viver saudavelmente, livre da tirania dos vícios, não fuma, isto é, não faz da boca uma fornalha e do nariz uma chaminé, porque não ignora que o vício do tabaco, parente, segundo Freud, de equivalente vício sexual, só é proveitoso para os trustes industriais, capitalistas, e para o Estado, que em todo mundo exploram e envenenam a humanidade ignara, e constitui o primeiro passo na iniciação em outros vícios não menos perigosos, entre os quais o da maconha e o do LSD."

Contra o vício de fumar – "uma das principais fontes de renda do Estado" –, Roberto um dia pesquisou, imprimiu e distribuiu "infalível método". É o seguinte:
"Diariamente, ao levantar-se e à noite, o viciado, na posição de sentido perante um espelho, exproba-se, atirando, nas suas próprias bochechas reflectidas, frases recriminatórias e estimulantes do amor-próprio, como 'não te envergonhas, imbecil, de sustentares com prejuízo de tua saúde, da tua dignidade e do teu bolso, os Souza-Cruzes, os burrocratas e lesmocratas e quejandos vagabundos? Quando criarás vergonha nessas fuças, palerma?' (Ou outro palavrão porventura ainda mais ofensivo, como estúpido, cretino, atrasado mental, imaturo, reaccionário, estalinista, fascista, burguês, otário, maricas, filho da puta.)"

"Marx, além de roubar os principais conceitos de sua obra (mais-valia, etc.) de economistas liberais, socialistas e anarquistas franceses e ingleses, chamou-os de utopistas. A maioria dessas utopias, no entanto, foi ensaiada em colônias experimentais e falanstérios. Sem a conotação marxista de 'coisa irrealizável, devaneios de loucos sem base na realidade'.
(...) Como o marxismo ainda não acabou com a divisão de classes e fortaleceu apenas uma burocracia de elite encastelada no Estado, Roberto conclui afirmando que a obra de Marx é que deve 'ser chamada de socialismo utópico — na pior acepção que os marxistas atribuem a esta expressão'."


A revolução biológica e o sistema Waerland

Ele recomenda que "quanto mais ofensiva a expressão usada, maior valor terá a erradicação do vício". Caso não apresente resultados dentro de um mês de intensivo uso do "método", "não haverá mais nada a fazer, senão esperar que um câncer providencial venha liberar o mundo de mais um idiota indigno da vida”.

Roberto chama de "revolução permanente" o caminho aberto pela "alimentação- biológica", "sem drogas de farmácias, imunizado apenas pela consciência esclarecida do que estas significam, e confiante no poder regenerador dos agentes naturais". Para pensar assim, Roberto esteve aos 16 anos praticamente desenganado pelos médicos. Na sua família de sete irmãos, era o mais debilitado: "Ninguém dava nada por mim". A partir dai aderiu ao vegetarianismo, e – afirma – restabeleceu a saúde.

Esta alimentação biológica tem origem no sistema Waerland, um bromatólogo suíço de quem o poeta anarquista editou obras na sua Germinal. A particularidade dessa dieta vegetariana é a recusa de comer peixe – “o pior dos alimentos para a saúde, com maior número de bactérias de putrefacção. Para compensar, nele é usado muito sal, e isso arruina os rins. Por isso as populações ribeirinhas vivem menos". Ele ainda renega, também, alimentar-se de ovos, "menstruação de galinha", carne de aves ou qualquer animal.

No Rio de Janeiro, Roberto é um dos fundadores e consultor da pioneira Cooperativa dos Vegetarianos da Guanabara, que reúne cerca de 6 mil associados. A entidade hoje é autónoma na produção de alimentos – frutas, hortaliças, cereais, leguminosas — fornecidos pela colónia agrícola que mantém nos arredores do Rio de Janeiro, em Papucaia.

É aí que ele costuma almoçar todo dia. Para isso atravessa o Rio de Janeiro de ónibus – Lins-Praça Tiradentes –, tendo nas mãos a inseparável sacolinha onde coloca um suprimento de seus panfletos naturistas, livros de dieta e anarquistas. Nas ruas da cidade seu passo é rápido, o olhar pacífico atravessa o caos urbano, naquilo que ele chama de "sifilização cristã".

Roberto das Neves explica que se tornou anarquista individualista por "uma questão de nascimento, educação, tradição, família, etc." De seus pais herdou o ateísmo. Ainda criança iniciou-se na heresia com as primeiras perguntas sobre a existência de Deus, o que mereceu bons cascudos de sua avó, por não aceitar os dogmas da Igreja. Adolescente, partiu para sabotar os templos católicos espalhando substâncias químicas malcheirosas pelo chão. Hoje, porém, ele não mais afronta os adeptos de outras crenças: "Não podemos impedir que pensem assim. Podemos exigir, no entanto, que sejam coerentes. Um cristão, que se diz cristão, se colocar ao lado dos poderosos e dos ricos — isso é que é de espantar."


Lutando contra o fascismo, contra Salazar, contra...

Ele reconhece que a Igreja hoje tem procurado "se colocar a favor dos humildes, dos pobres e lutar pela redenção humana". Lembra o ano que passou na Revolução Espanhola, quando padres lutavam ao lado de anarquistas nas providas bascas e na Catalunha, contra o fascismo. Diz ele que estes católicos vieram depois ao Brasil e puseram aqui em prática a experiência adquirida no convívio com os anarquistas, o que favoreceu o novo rumo da Igreja neste país.
O poeta libertário, antes de vir ao Brasil, sob pecha de herético sofreu 13 prisões na Portugal salazarista. O refúgio mais próximo era nessa época a Espanha, onde passou 4 anos esparsos e os anarquistas estavam a pique de empreender a maior realização libertária da história (com a autogestão da Revolução Espanhola — 1936-1939). Cada poema seu editado em jornal valia uma ameaça de prisão. Por isso, atravessava a fronteira para não ser pego, até o ponto de saturação, quando Salazar interditou Portugal à sua presença. Como saída, mudou-se para o Brasil, em 1938.

Aqui, continuou na luta contra a ditadura portuguesa, colaborando com nativistas de diversas outras correntes de pensamento: liberais, socialistas, embora com o PC não se desse bem. A desconfiança dos libertários com relação ao Partido Comunista é forte. Não se esqueceram dos massacres de Kronstadt (1921) nem dos da Ucrânia (1920), quando a participação na Revolução Russa se limitou à chancela do partido único; nenhuma organização autónomo de trabalhadores teve mais espaço reconhecido no país da "ditadura do proletariado".

"A Rússia foi um fracasso. Criou-se um capitalismo de Estado, coisa mais abominável que o capitalismo vulgar. Eles esqueceram que sua finalidade era no começo desbaratar a organização burguesa. Tornaram-se um novo imperialismo, que está associado em toda parte com os partidos políticos", acrescenta.

O marxismo mereceu de Roberto das Neves o lançamento com dedicação, pela Germinal, da obra Marxismo, Escola de Ditadores — introdução de sua autoria a Erros e Contradições do Marxismo, do russo Varlan Tcherkesof.

Desancar a "religião marxista", para quem conhece suas nobres origens, parece ser o objectivo de Neves-Techerkesof. Segundo Roberto, "na obra de Karl Marx há que distinguir duas partes; uma, que é boa, mas não é dele; e outra, que é dele, mas não é boa".

Ele afirma que Marx, "além de roubar os principais conceitos de sua obra (mais-valia, etc.) de economistas liberais, socialistas e anarquistas franceses e ingleses — Sísmondi, Victor Consideram, Robert Owen, W. Thompson, Adam Smith, Blanqui, David Hume, Proudhon e Fourier, entre outros —, chamou-os de utopistas. A maioria dessas utopias, no entanto, foi ensaiada em colônias experimentais e falanstérios. Sem a conotação marxista de 'coisa irrealizável, devaneios de loucos sem base na realidade'."


A frieza do marxismo: onde está a ciência?

"É que na Rússia o sonho e a liberdade continuam, desde Lenine, considerados como futilidades ou preconceitos burgueses. Ao devaneio tolerante, libertador e criador da utopia, preferem os marxistas o realismo frio e esterilizante do dogma", diz Roberto das Neves.

O anarquista questiona, por fim, o carácter socialista científico do marxismo, que "jamais submeteu suas teorias ao controle da experiência com o método científico, limitando-se a examinar os dados oficiais, frios e raramente exactos das estatísticas."

Como o marxismo ainda não acabou com a divisão de classes e fortaleceu apenas uma burocracia de elite encastelada no Estado, Roberto conclui afirmando que a obra de Marx é que deve "ser chamada de socialismo utópico — na pior acepção que os marxistas atribuem a esta expressão".

1952, celebração do 369 Congresso Eucarístico no Rio de Janeiro. Patrocinado pelas lojas maçónicas "Germinal" e "Lusitânia Livre", Roberto publica e distribuí o folheto "O Verdadeiro Catecismo", que teve 5 edições. No mesmo estilo de linguagem simples da divulgação católica, com perguntas e respostas, fala de Deus — "Todo-Poderoso, porque é dele que nos vem toda a força" – e aos poucos tenta mostrar a inutilidade da Igreja na experiência religiosa quotidiana, para em seguida atacar a instituição do clero.

"O padre é o maior inimigo de Deus na Terra. Quando Jesus andou nesse mundo, já aqui encontrou igrejas e padres que viviam às expensas dos crentes." E emenda: "Os padres não servem ao povo nem a Deus, mas somente aos poderosos, para manterem jungidos os pobres aos arados dos ricos". Os abusos do clero subserviente ao poder são apontados sem piedade, no bom sentido anarquista de induzir os fiéis a olhar com os próprios olhos para as suas vidas. E, assim, eliminar os intermediários profissionais entre eles e Deus.


A participação do poder maçónico

Para escrever esse panfleto, Roberto inspirou-se nos "ensinamentos de Jesus", e recomenda nele "a bondade, que nos embeleza", a indulgência, gratidão e solidariedade humana. Finda com a afirmação de que "essa é a melhor maneira de amarmos, e servirmos a Deus".

Pergunto-lhe sobre essa intervenção e ele reconhece ter usado "o próprio linguajar deles, contra eles".
Nada disso, portanto, prejudica o ateísmo de Roberto das Neves. Maçom no rito escocês, iniciado na loja portuguesa "Rebeldia", em 28, tendo alcançado grau 25, exilado no Brasil em 1948 ele entrou para a loja "Filantropia e Ordem", do Rio. O nome adotivo que trazia desde sua entrada nos pedreiros-livres, Satã, criou receios entre alguns maçons cariocas, que acreditavam ser aquilo contrário aos princípios da maçonaria.

O patrono da instituição, o Grande Arquitecto Universal, pensavam estes maçons, era Deus, que seria ofendido com o nome adoptivo Satã. Para resolver a questão, reuniu-se "uma comissão de altas entidades maçónicas", que por fim decidiu que a escolha do discípulo um tanto quanto surpreendente não feria o princípio maior da maçonaria, pois "este e Satã ou Lúcifer, o portador da luz, são a mesma entidade".

E ficou ele com o pseudónimo com que passou a assinar artigos satíricos na imprensa anarquista: jornais Acção Directa, do Rio, e A Plebe, de São Paulo. Então chamava-se doutor Satã, pois aproveitou o título obtido na universidade com tese "Os Temperamentos e Suas Manifestações Gráficas".

Roberto grafólogo: é uma das suas facetas. Até hoje ele tem clientes que não admitem empregados sem antes submeter a letra do candidato ao seu exame. Inclusive os noivos das filhas escrevem, e o poeta libertário vê nos rabiscos "o espelho da alma: carácter e personalidade, humor, todas as características pessoais"

Roberto costuma afirmar que os maiores pensadores do anarquismo foram maçons: Kropotkin – "que baseado nos arquivos da organização escreveu sobre a Revolução Francesa" —, Bakunin, Max Stirner, E. Armand, Han Ry-ner, Luisa Michel, Sebastian Faure, Malatesta, Herbert Spencer, Benjamim Tucker, Jean Grave, Proudhon — "co-autor do Manual do Rito Moderno ou francês" – e Leon Tolstói.

Sua ligação com a maçonaria vem das conferências que proferia na Europa e no Brasil em lojas, algumas clandestinas sob ditaduras, a respeito do anarquismo. Embora hoje afastado das reuniões maçónicas, "sem frequentar normalmente", reconhece o poeta que "a humanidade a ela deve muito, por ser um dínamo que a acciona". A instituição dos pedreiros-livres, diz ele, "nos impulsionava, obrigava-nos a pensar, a estudar juntos. Pior seria se não existisse, apesar de seus defeitos".


Socialismo libertário como grande saída

Quanto aos defeitos, Roberto um dia encarou-os de frente e atirou sólidas tijoladas na acomodação da instituição que "representa o desenvolvimento, o poder e a decadência moral da burguesia" sem conservar muito da tradição revolucionária de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

Na ocasião das críticas, chegou a dizer: "A sociedade secreta, que hoje subsiste com o nome de maçonaria, se quiser sobreviver, tem de adoptar um novo objectivo: o socialismo libertário. Só ele concilia os direitos inalienáveis do indivíduo com as soluções colectivas. Se tem que preparar os espíritos para a Anarquia. Uma sociedade sem escravos nem senhores, sem fronteiras nem exércitos, sem Estado nem propriedade de uns em detrimento dos que a trabalham. Uma sociedade em que os indivíduos saibam governar-se dispensando o Estado — em que o governo dos homens seja substituído pela administração das coisas."

Encontra-se dentro dessa polémica suscitada dentro da organização maçónica todo o ateísmo anarquista, que Roberto procura esclarecer. "A maçonaria", prossegue, "fez reviver e popularizou nas sociedades modernas que o universo não tem começo nem fim: está em permanente devir. No universo regido peia lei da evolução permanente, portanto, Deus não tem nada que fazer. Tudo é força da mecânica molecular, do átomo em suas variações, eterna e infinitamente combinadas pelo próprio dinamismo, sem um ordenador, sem força externa."

"Falta, sobretudo, na sociedade de hoje, solidariedade, livre acordo mútuo nas organizações e sobra autoridade, mando sobre os semelhantes do homem."


''Nunca tive simpatia pelas maiorias"

Transportado para o terreno filosófico, político e sociológico, esse princípio da maçonaria teve impulso renovador sobre as instituições vigentes: "Derrubou as monarquias do direito divino, o feudalismo e a Inquisição, tão caros à Religião e a Deus (sinónimo do culto do passado, de tirania, de estagnação e morte)".

A aliança entre o despotismo e a religião, o poder e a mistificação religiosa, a "Espada e a Cruz é de todos os tempos", revela Roberto. "O Estado, ou seja, a Autoridade, a opressão do homem pelo seu semelhante, é. uma injustiça, uma imoralidade, absurdo tão gritante que é necessário que a Religião venha abençoá-lo em nome de Deus para que os homens acatem e submetam o pescoço à canga."

Finaliza o ateu: "Os homens não necessitam da hipótese Deus para meditar, mover-se, comer, beber, defecar, amar, praticar uma boa acção, sentir as emoções do belo e do elevado, viver. Deus não é só indiferente perante as volições de cada um, mas repugna à inteligência de muitos. A minha, jamais, desde a infância, pôde concebê-lo."

Faço-lhe perguntas procurando uma reconciliação, que os anos avançados talvez possam trazer, com a espiritualidade:

"Reconhece que essa dimensão espiritual faz parte da vida humana?", digo.

"É um ponto de vista diferente do nosso. (...) Não tenho motivo algum para abjurar dos meus pontos de vista. Sou isso desde os 10 anos. Eu no fundo sou individualista, embora aceite muitas vezes o comunismo libertário, que é menos perigoso do que o outro comunismo à maneira russa. Isso quando não se está preparado ainda para uma coisa de maior expressão em bases individualistas, o que supõe uma mentalidade que a humanidade não atingiu."

"Diante das correntes de esquerda hoje em actividade, você não fica marginalizado?", interrogo.

Com calma vem a resposta: "Eu sempre me considerei membro da minoria. Nunca tive simpatia pela maioria, tão habituado estou a ver que a maioria é constituída por imbecis, por analfabetos, por hipócritas."

Indago ainda se ele vê alguma virtude na revolta.

Segundo Roberto das Neves, "a revolta é indispensável. Se não há revolta, o mundo continua como está. É preciso, porém, saber aplicar a revolta."

Quero saber se ele é adepto do pacifismo.

"Sim. De vez em quando, diante de um hipócrita ou de um covarde não recorro à violência das armas. Procuro a arma da sátira."

Faço mais uma pergunta a respeito da revolta, se ela não pode enfim amargurar a vida de uma pessoa.

Ele confirma. Explica: "Mas o mundo não caminha sem amargura, sem sofrimento, infelizmente."

Roberto, todavia, não deixa de fazer com gosto o seu trabalho. Mantém intacto o sentido ético no relacionamento humano, vê-se nele alguém afável, atencioso, de vez em quando gozador, porém nunca odiento. Várias vezes interrompe a entrevista para fazer-me perguntas pessoais, e se mostra interessado nas respostas.


Provado: a falência das instituições

As ideias anarquistas nele já estão amadurecidas, frutos de muitas reflexões, estudo e inspiração, pois se trata de um poeta. Sua musa inspiradora, pode-se dizer, é a anarquia. É ela que lhe abre os olhos para as injustiças e o coração para as alegrias da vida. Anteriormente, a questão social aparecia em seus livros em primeiro plano. Agora, no que editou, transparece mais a preocupação com o naturismo, se bem que no balanço final, quando ele formula a noção de "sifilização cristã", dá no mesmo. Todas as instituições ocidentais cabem dentro da deterioração interna por ele apontada.

Falta, sobretudo, na sociedade de hoje, solidariedade, livre acordo mútuo nas organizações – ele dá a entender —, e sobra autoridade, mando sobre os semelhantes do homem. No casamento, na questão da mulher, na criação das crianças, a contaminação do poder é abusiva. Ao mesmo tempo Roberto atesta a falência das instituições: na mulher ou no marido que traem a relação matrimonial, no filho que cresce revoltado e na mulher que aproveita as mínimas brechas para improvisar uma desforra dos anos de subjugação.

Provoco-o um pouco mais em busca de alguma fé recôndita. Insisto em obter dele uma confissão qualquer de espiritualidade. Toco no momento Nova Era e questiono as afinidades que tenha com suas ideias.

"Muitas, Estou inteiramente de acordo. Eles recusam a prestação de serviço militar: não querem matar pessoas de quem não tenham razão de queixa. Nem morrer."

"Mas isso não tem um fundo místico-cristão?", digo só para pôr lenha na fogueira.

"Nem todos", afirma ele. "E, ainda que tenham, a gente perdoa."

"Segundo a Nova Era, a humanidade, a superar o carma que tem a cumprir, virá com mentalidade mais evoluída", comento.

Roberto espera isso: "Não afirmo que virá, mas espero que venha."

Ele tem esperanças "de que a humanidade reconheça que é estúpida, que muitas ações que vem tomando não se justificam. Como, por exemplo, matar e morrer, querer o salvador, o infalível, o proprietário único da verdade. A civilização moderna, aquilo que chamo de sifilização cristã..."

Aproxima-se o meio-dia: hora de irmos até o centro de ónibus, almoçar no vegetariano da cooperativa. O Rio está nublado.


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