Por Roberto das Neves
Na
obra de Karl Marx há que distinguir duas partes: uma, que é boa,
mas não é dele; a outra,
que
é dele, mas não é boa.
A
primeira consiste, em resumo, na crítica da sociedade capitalista e
no enunciado das teses da "mais-valia", assim chamada a
parte-de-leão arrancada pela voracidade dos patrões ao salário dos
trabalhadores; na "interpretação materialista ou econômica da
História"; na aplicação do "método dialético" às
investigações sociológicas; na "lei da concentração do
capital", ou seja da "expropriação do maior número de
capitalistas pelo menor; e na "teoria do preço e do valor do
trabalho".
Ora,
todas estas teses são válidas, pelo menos relativamente.
Confirmam-no diariamente as gritantes injustiças da sociedade em que
vivemos, e das quais são principais vítimas os trabalhadores,
sanguessugados pelo capitalismo e triturados pelo Estado. Mas tais
idéias, que Marx, empanturrado da
abstrusa e reacionária filosofia hegeliana e, com toda uma tradição
rabínica, passando a vida inteira divorciado do trabalho calejante e
dos trabalhadores, proclamou, do alto do Sinai da sua "genialidade"
e "sapiência", serem descobertas suas, não são dele,
conforme no-lo demonstra Varlan Tcherkesoff, ao longo do seu
irrefutável e documentado livro "Erros e Contradições do
Marxismo"[1], mas sim teses e teorias já antes dele formuladas
por economistas liberais, socialistas e anarquistas franceses e
ingleses, designadamente Sismondi, Victor Considérant, Robert Owen,
William Thompson, Adam Smith, Saint-Simon, Blanqui, Gustav Thierry.
David Hume, Turgot-Ricardo, Baptiste Say, Proudhon, T. Rogers,
Fourier e outros, de quem Marx as furtou.
E
o mais curioso é que, não satisfeito com havê-las furtado, Marx
ainda por cima insulta, ou pretende insultar, as vítimas dos seus
descabelados plágios, chamando-lhes, pejorativamente, "utopistas",
sem ter em conta que, ao contrário do que imagina ou se esforça por
fazer crer, a expressão "utopista" nada tem de
depreciativo, pois, como todos sabem, as mais luminosas realizações
de todos os tempos tiveram por crisálida a utopia.
UTOPIAS
E "SOCIALISMO UTÓPICO"
Que
é uma "utopia"? A palavra é formada pelos radicais gregos
"ut" (não) e "topos" (lugar), designando um
lugar que não existe senão na fantasia; por extensão, descrição
de um país ideal onde
tudo está organizado de modo a garantir a felicidade de todos.
O
primeiro, que se saiba, a usar de tal palavra, nesta acepção, foi
Thomas More (1478-1535),
uma
das maiores glórias do Renascimento, que em 1516 deu à luz, na
Inglaterra, a sua obra imortal, justamente
intitulada "Utopia", na qual se encontram em germe todas as
grandes reformas sociais, que
se lhe seguiram e que tão poderosa e salutar influência exerceu e
continua exercendo, não só na Inglaterra,
mas em todo o mundo.
Para
Marx, Engels e seus pintainhos, porém, a expressão "utopia"
tem o significado pejorativo de
"coisa irrealizável, devaneio de loucos sem base na realidade".
Assim, é comum ouvir cacarejar esses
pobres-diabos emprenhados da infalível sapiência do Mestre:
"Coitados! São uns utopistas! Coisas
muito bonitas, sem dúvida, aquilo com que eles sonham, mas não
passam de utopias! Talvez um
dia, sim, venha o seu ideal a realizar-se, mas primeiro hão de
passar uns cem a duzentos anos sob
o cabresto e o chicote da ditadura-do-proletariado, tal como a define
o marxismo-leninismo.
Era
o que faltava, quererem ir mais depressa do que convém!... A
Natureza não dá saltos, a não ser com licença do Partido
Comunista! Primeiro, têm que gramar-nos, como comissários-do-povo, pois
para isso fizemos cursos que nos habilitam para tal função!"
Ao
contrário, porém, do que fazem crer os marxistas, "utopia"
está longe de significar coisa irrealizável, sem raízes na terra,
mas tão-somente aquilo que ainda se não realizou, o embrião do que
há de, um dia, quando os homens quiserem, realizar-se. Utopias foram
a monarquia liberal, no tempo
das monarquias absolutas; a abolição, na época da escravatura; a
república, na era da monarquia; o ônibus, o submarino, a viagem à
Lua, etc., quando o anarquista Júlio Verne as anunciava em seus
romances utópicos. As maravilhosas realizações de hoje foram as
desdenhadas utopias de ontem, como as utopias de hoje serão as
realidades luminosas e triunfantes de amanhã.
Na
sua apaixonante "História das Utopias", o Dr. Marx
Nettlau, erudito historiador anarquista e maçom austríaco, dedicou
as seguintes palavras à reabilitação deste gênero literário tão
escarnecido por Marx e Engels: "Facilmente se desprezam as
utopias,
consideradas
por muitos como inúteis, ilusórias, contrárias à realidade e à
ciência. Guardemo-nos de seguir essas vozes secas e utilitárias. O
mundo é bastante pobre, tal como agora se encontra, e por isso toda
utopia
é uma
das suas mais belas e raras flores. O homem é verdadeiramente pobre
se não afaga um sonho, se não leva no cérebro a eterna utopia de
um ideal, coletivo ou individual, concebido na sua primeira
juventude, construção muito variável, à qual acrescenta
modificações em cada etapa de sua evolução moral e intelectual,
que cresce, envelhece e morre com ele. Que vacuidade a do cérebro
que a não conhece e que, por orgulho, resignação ou mera
vulgaridade absoluta, não pensa mais além do presente! Ao
contrário, o carpe diem
vale
sempre, mas os que estão absolutamente absorvidos por ele são seres
tão incompletos como os que vivem exclusivamente no sonho, na
utopia".
Ora,
a utopia é, mais que um puro gênero literário, um fenômeno social
de todas as épocas e uma
das primeiras e mais antigas formas do progresso e da rebeldia
fecundante e renovadora, porque o anseio que o homem sente de
elevar-se acima de um presente cinzento, sombrio ou injusto, só
aceitável para o tirano, o usurpador, o explorador dos seus
semelhantes, e para os homens sem horizontes, membros do panúrgico
rebanho humano, converte-se em reflexão sobre o futuro, em visão do
que poderia fazer-se, e, finalmente, em ação, trabalho,
investigação e experiência. Nem sempre, porém só a utopia vara
as nebulosas do porvir. Não raras vezes, também a fantasia popular,
auxiliada por algumas tradições e pelo espetáculo dos povos
primitivos, entre os quais não existiam ainda espoliações,
restrições e repressões, se remonta a um estado de justiça,
abundância e felicidade, no passado. É o caso da Idade
de Ouro
e do Paraíso,
que
constituíram as primeiras utopias.
UM
POUCO DA HISTÓRIA DAS UTOPIAS
Contam-se
por centenas, senão milhares , as utopias engendradas pela
imaginação dos escritores, poetas e filósofos de todos os tempos,
desejosos de acelerarem o carro do progresso social, moral ou
científico da humanidade. De entre elas, destacam-se, além da já
citada, de Thomas More, pela decisiva infuência que exerceram ou
exercem na marcha das idéias, as seguintes:
A
"Politéia", de Platão, avó ancestral de todas as utopias
posteriores; a "Abadia de Téleme", de Rabelais, espécie
de falanstério ácrata, que tinha por única lei o "faze o que
quiseres!"; a "Cidade do
Sol", do calabrês Thommaso Campanella, escrita na prisão de
Nápoles, entre 1620 e 1623; "Nova Atlântida", de Francis
Bacon; "Telémaco", de Fenelon, um dos livros mais
difundidos em todo o mundo; a "República dos Filósofos",
atribuída a M. Fontenelle: as "Cartas Persas" de Montesquieu:
o "Emilio" de Rousseau; "Letho",
do padre Terrason,
de caráter maçônico (1731); os três espirituosos contos
alegóricos de Voltaire: "Cândido". "Zadig" e
"Micrémega": a "Idade de Ouro".
de Sylvain Marechal (1782), autor do famoso "Dictionaire des
Athées", que nos descreve um
país ideal regido por um anarquismo pastoril; "Equality or
History of Lithconia", da qual a Europa tomou conhecimento, em
1838, através do "New Moral World", o importante órgão
de Robert Owen, em cuja colônia experimental socialista, na América
do Norte, foram ensaiadas as teses contidas nesta utopia; "Walden",
de Henry David Thoreau, utopia do verdadeiro individualista, que vive
nos bosques a sua própria vida; o "Humanisfério", do
anarquista francês Joseph Déjacque, emigrado na América do Norte,
onde a publicou, inicialmente, em folhetins, no jornal "Le
Libertaire", de Nova Iorque, de 1858 a 1859; "Paris en l'an
2.000" (1867), do dr. Tony Moilin, mártir da Comuna de Paris,
fuzilado no Jardim do Luxemburgo; "Mundo Novo", de Luíza
Michel (1889);
a "Icária" ou "Viagem à Icária", de Étienne
Cabet, uma das mais famosas utopias, aparecida na primeira metade do
século 19; "A Comuna Social", de James Guillaume,
publicada no "Almanach Jurasien" para 1871; "A
Conquista do Pão", do sábio anarquista russo Peter Kropotkin,
complemento da obra do mesmo autor "Palavras de um Rebelde";
"Looking Bakward", de Edward Bellamy,
escritor norte-americano, editado em português com o título "No
Ano 2.000", uma das obras
que maior número de edições alcançaram em todo o mundo e que,
tendo aparecido, pela primeira vez, em 1887, em Nova Iorque, inspirou
a Kropotkin, que não se conformara com as soluções estatistas
propugnadas no livro, uma série de artigos, sob o título "O
Século 20", no jornal anarquista "La Revolte", em
1889, e, daquele mesmo autor, "Equality", posterior àquela
e de maior valor,
embora de menos voga; "Uma Comuna Socialista", do dr.
Giovanni Rossi, anarquista italiano, cujas idéias se plasmaram na
Colônia Cecília [2], onde camponeses e operários italianos
desbravaram um terreno virgem doado pelo imperador D. Pedro 1.°, em
Palmeira, Paraná, Brasil, ali
instalando
uma coletividade livre e experimental, "sem ideal preconcebido"
(como frisa Rossi, em livro posterior, no qual reconheceu ter a
experiência, que durou alguns anos, demonstrado ser possível a vida
em regime libertário); "O Louco e Seus Dois Irmãos" do
imortal romancista e anarquista cristão russo Leon Tolstoy (1886);
"News From Nowhere" (Notícias de Nenhuma Parte), do pintor
inglês William Morris; "Freiland" (Terra Livre), do dr.
Franz Oppenheimer; e "Der Judenstat" (o Estado dos Judeus),
de Theodor Herzl (1896), estas três, de israelitas, a quem o
marxismo repugnava pelo desprezo a que votava a liberdade,
considerada como um "preconceito burguês", e que deram
origem à criação dos primeiros "kibutzim", "moshavim"
e "kvutsot", coletividades agrícolas e industriais, de
tipo cooperativo e comunista (não marxista ou autoritário, mas
libertário ou anarquista), hoje florescentes na Palestina[3]; "Les
Amours de l'Age d'Or" e "Evenor et Lucippe", de George
Sand (1885); "Mundos Imaginários e Mundos Reais" (Viagem
Pitoresca pelo Céu) (1865), do astrônomo Camilo Flammarion, que
nesta obra resume as fantasias utópicas concernentes aos outros
planetas; "Fecundidade" e "O Trabalho", de Émile
Zola; "Sur la Pierre Blanche" (publicada em português com
o título "Cristianismo e Comunismo") e "A Ilha dos
Pingüins", ambas de Anatole France; "Fragmentos de
História Futura" (1904), do filósofo francês Gabriel Tarde;
"Gréve des Amoureuses", de Camile Périer; "The
Agnostic Island" (A Ilha dos Agnósticos), de F. J. Gould
(1887), publicação de livres-pensadores; "Le Christ au
Vatican" (O Cristo no Vaticano) que em muitas edições se
atribui a Victor Hugo, mas que, na realidade, é do republicano
francês Jacques Antoine Chappuis; "Nouvelle Abbay de
Théléme",
de Louis Estève (1906); "La Nueva Utopia", de Ricardo
Mella, e "El Siglo de Oro", de M. B., ambas publicadas no
"Segundo Certame Socialista" (Barcelona, 1890); "La
Leggenda del Primo Maggio" (A lenda do Primeiro de Maio), do
poeta anarquista italiano Pietro Gori(1909); "Terre Libre",
de Jean Grave (1908); "Os Anarquistas" (1891) e "Die
Freiheitsucher" (1920), ambas do anarquista individualista J. H.
Mackay; "Ten Men of Money Island" (Dez homens na Ilha do
Dinheiro), de Seymour F. Norton, na qual são discutidas as
espinhosas questões do câmbio, que na época do aparecimento desta
obra (Londres, 1896) agitavam os individualistas ingleses e
americanos; "Como Faremos a Revolução", dos
anarco-sindicalistas franceses Émile Pouget e Émile Pataud,
inspirada na concepção revolucionária do sindicalismo orientado
pelos anarquistas (1909); "O Meu Comunismo (ou A Felicidade
Universal)", do francês Sébastien Faure, tendo por tema, como
a anterior, a instauração da sociedade libertária por meio dos
sindicatos revolucionários; "La Ciudad Anarquista Americana",
editada, sem menção do autor, em 1914, em Buenos Aires, por "La
Protesta", diário da Federación Obrera Regional Argentina;
"Uma Utopia Moderna" e "O Mundo Libertado", de H.
G. Wells; "Les Pacifiques", entrevendo a anarquia integral
de uma idade longínqua, no terreno clássico de numerosas utopias,
desde Platão, a Atlântida; "A Vida Eterna" e "O
Quinto Evangelho" (a vida e a
pregação do Cristo anarquista e maçom, em linguagem bíblica) [4],
de Han Ryner; "The Twenteth Century" (O Século 20), pelo
sábio sexólogo inglês Havelock Ellis (1900); "Náufragos",
de Adrian del Valle, aventura de um grupo de milionários que, em
companhia de seus criados, naufragam, a bordo de um iate, salvando-se
a custo e indo parar a uma ilha deserta do Pacífico, onde,
despojados das suas riquezas e dos seus privilégios, reconstroem a
sua vida, fundando, naquelas paragens, uma sociedade libertária. O
tema deste romance é o mesmo da "Ilha Misteriosa", do
anarquista Júlio Verne, que pode também, por isso, a par de utopia
científica, incluir-se entre as utopias anarquistas, pois, como
"Náufragos" de A. del Valle, nos pinta a existência de um
grupo de homens que, tendo naufragado e arribado a uma ilha deserta,
ali vivem, durante muitos anos, sem propriedade privada, sem dinheiro
e sem Estado, na maior harmonia e felicidade.
Na
literatura brasileira, registram-se três notáveis utopias:
"Harmonia", de Afonso Schmidt; "Há 2.000 Anos",
do famoso escritor Francisco Cândido Xavier, sob o pseudônimo de
"Emanuel", e "Viagem ao Planeta Marte", do
curitibano Hercílio Mase, sob o pseudônimo de Ramatis. Tanto a
segunda, como a terceira, sob a forma de obras mediúnicas, refletem
a aspiração ideal, da nossa época, de uma pátria planetária, sem
fronteiras, sem dinheiro, sem exércitos, sem tribunais, sem cadeias,
numa palavra, sem Estado, na qual os povos se entendem por meio de um
idioma comum e resolvem os problemas coletivos por mútuo e livre
acordo, e onde a intoxicante alimentação cadavérica, que predispõe
à doença e ao crime, foi substituída pela alimentação
vegetariana. Os dois livros, de Francisco Cândido Xavier e Hercílio
Mase, têm esgotados sucessivas edições e correm editados em
Esperanto, através do mundo, tendo sido, por intermédio do idioma
mundial, vertidos em numerosas outras línguas.
Na
literatura russa, apareceram também, como não podia deixar de ser,
numerosas utopias. Além da
já citada, de Tolstoy, são dignas de menção: "La Rugha
Stelo"5 (A Estrela Vermelha. Citei em esperanto, porque foi na
edição esperanta que li, há muitos anos, esta obra famosa), de
Bogdanoff (1910), cujo tema consiste numa viagem ao planeta Marte,
onde os visitantes, da Terra, encontram a vida organizada de
conformidade com a concepção marxista; e "Como ficaram os
camponeses sem autoridades", publicada, sob a firma de Stenka
Zayaz, em 1919, ou seja nos primeiros anos após a Revolução, obra
inspirada na concepção anarquista, como do seu título se infere.
Depois desta, não se conhecem outras utopias. O motivo é fácil de
deduzir se nos lembrarmos de que na Rússia, país de regime
totalitário, não existe liberdade de imprensa nem artística, e que
a utopia é considerada, no "país do socialismo", como um
gênero literário "herético", "pequeno-burguês",
"anarcóide". Pasternack e outros escritores russos tiveram
a idéia, depois da queda de Stalin, de ressuscitá-la. Todos sabem o
que lhes aconteceu. É que a Rússia, apesar do abrandamento do
regime de terror, desde a morte de Stalin, ainda se não reconciliou
com o sonho e com a liberdade, que continuam a ser ali considerados,
desde Lenin, como "futilidades" e "preconceitos
burgueses". Ao devaneio tolerante, libertador e criador, da
utopia, preferem os marxistas o realismo frio e esterilizante do
dogma.
O
SOCIALISMO "UTÓPICO" DE MARX
Em
defesa dos socialistas liberais e anarquistas, roubados e
escarnecidos por Marx, sob o apodo de "utopistas", cumpre
acrescentar que eles não se limitaram a compor utopias arrancadas à
fantasia ou com materiais da simples observação. A maioria deles,
senão a totalidade, ensaiaram-nas em colônias experimentais e
falanstérios. Foi o caso de Robert Owen e de Fourier. O primeiro
destes, como atrás dissemos, chegou à América do Norte em 1824, e
ali, juntamente com o anarquista-individualista norte-americano
Josiah Warren, fundou a colônia "New Harmony", onde foram
ensaiados vários sistemas de economia estranhos ao mundo
capitalista. Foi lá que Warren, antecipando-se
a Marx e ao próprio Proudhon, graças aos resultados da experiência,
formulou a teoria
do
valor, que os marxistas, erroneamente, atribuem ao seu pontífice. É
conveniente, a propósito, recordar que Marx, como os demais
economistas burgueses, distingue entre o chamado trabalho
especializado
e
o ordinário,
atribuindo
ao trabalhador intelectual remuneração mais elevada que ao operário
manual. Assim, entende que uma hora de trabalho do médico, do
professor, etc., equivale a duas de trabalho do tecelão, do
sapateiro, da enfermeira, do trabalhador rural, etc. Warren
estabeleceu a mesma diferença, mas, ao contrário de Marx e demais
economistas burgueses e reacionários, a favor dos operários
ocupados em trabalhos pesados, desagradáveis e insalubres.
Do
exposto se conclui que o verdadeiro "socialismo científico",
no exato significado do termo, é o daqueles a quem os marxistas
designam por "utopistas", e que "socialismo utópico",
no sentido pejorativo que os marxistas emprestam a esta expressão, é
o elaborado por Marx, o qual jamais submeteu as suas teorias (que,
como está provado, não são dele, mas daqueles a quem chama
"utopistas") ao controle da experiência, de conformidade
com o método científico, limitando-se a examinar os dados oficiais,
frios e raramente exatos, das estatísticas. Quer, pois, no sentido
que os marxistas dão às palavras "utopia" e "utópico",
quer tendo em conta que a ciência sociológica de Marx é toda ela,
ou quase toda, dos "utopistas", a conclusão, por mais
estarrecedora que seja para os partidários
do "infalível" economista, não pode ser outra senão a de
que, em qualquer dos casos, Marx é um "utopista" e,
portanto, que o marxismo é, nada mais, nada menos, que um
"socialismo utópico", na pior acepção, atribuída, claro
está, pelos marxistas, a esta expressão.
MARX,
NOVO MESSIAS
Ao
sair da Universidade de Berlim, envernizado de ciência econômica, o
jovem doutor em direito e neto de rabinos, à semelhança do Menino
Jesus entrando na sinagoga para discutir com os doutores da Lei,
resolveu entrar no movimento operário, não como aprendiz de
revolucionário, mas como pontífice e ditador, para desancar os
maiores vultos do socialismo. O sabichão começou por, no seu livro
"A Sagrada Família", escrito em colaboração com outro
sabichão, Friedrich Engels, surrar os irmãos Bauer, os mais
libertários da juventude que freqüentava o filósofo Hegel, a quem
Marx tanto ficou devendo. Depois, na "Ideologia Alemã", ao
longo das oitocentas páginas do enxundioso calhamaço, baixa o
porrete sobre Max Stirner, o famoso anarquista individualista,
precursor do existencialismo, autor do imortal "O Único e a sua
Propriedade" e o mais original dos pensadores alemães, conforme
o reconheceram pensadores da estatura de Nietszche e Schoppenhauer,
que naquela obra foram beber muitas das suas idéias. Na "Miséria
da Filosofia", atira-se, como cão raivoso, contra o genial
teórico do anarquismo, Proudhon (este, sim, autêntico proletário e
revolucionário), esquecido de que, antes, o incensara, confessando
ter sido a sua famosa obra "Que é a Propriedade?" que o
convertera ao socialismo, e proclamando-o "expoente máximo do
socialismo proletário" e a referida obra "um manifesto
científico do proletariado francês". Outros sobre quem ele,
com seu verdadeiro nome ou sob o pseudônimo de Engels, derramou a
sua bílis foram Weitling, o discípulo revolucionário de Fourier;
Blanqui: o grande Bakunin e seus discípulos; Ferdinand Lassalle. os
revolucionários da Comuna de Paris, o naturalista Vogt, os marxistas
Bebel e Liebknecht: os seus próprios genros. Lafargue e Longuet;
Füerbach e Dühring. Com Bakunin as coisas estiveram em vias de
ficar pretas, porque, tendo o autor de "O Capital" posto a
circular a infâmia de que o grande agitador russo estava a serviço
da polícia secreta do tsar. Bakunin decidiu ir procurá-lo e exigir
que ele provasse tal acusação. Diante da atitude firme e decidida
de Bakunin, Marx, sabedor de que o seu antagonista não era para
graças, acovardou-se e engoliu a infâmia, asseverando que jamais a
perfilhara.
Entretanto,
este homem ressentido, permanentemente azedo contra tudo e todos, que
só em si próprio descobria perfeições e que se sentia fadado para
ser o que, na realidade, veio a ser, um novo Messias, fundador de uma
nova religião, o Marxismo, era, pelos motivos que podeis ler na obra
do célebre libertário russo Varlan Tcherkesoff, o homem menos
autorizado para criticar os outros, particularmente aqueles que, como
Proudhon, Bakunin e os seus discípulos, e os revolucionários da
Comuna de Paris, haviam, quer nos seus livros de crítica ou
filosofia social, quer nas barricadas (aonde o medroso Marx jamais se
atreveu), afirmado o seu amor ao povo, aos vilipendiados, e a sua
decisão de ajudarem a proscrever da Terra os inimigos implacáveis
da humanidade: o Estado e o Capitalismo, ou seja a opressão e a
exploração do homem pelo homem.
MARX,
PROFETA FALHADO
Mas,
então, nada do que Marx se atribui ou do que os marxistas lhe
atribuem lhe pertence? - indagará o leitor. Sim, pertencem-lhe, pelo
menos, três coisas: as deturpações que introduziu nas idéias
que roubara (dir-se-ia que com o objetivo de, como fazem os ladrões
de automóveis, as tornar mais dificilmente reconhecíveis pelos seus
autores), as profecias e a "ditadura do proletariado".
Não
desejando ser inferior aos seus gloriosos antepassados semitas (desde
Ezequiel a Nostradamus), Marx meteu-se, como eles, a profeta. E,
então, preferindo às utopias as profecias (de mais sabor bíblico),
pôs-se a congeminar vaticínios. Assim, baseando-as na decantada
teoria da "concentração do capital" (que furtara de Buret
e Victor Considérant), lançou aos quatro ventos, entre outras, a
predição de que a Revolução Social iria estalar, dali a pouco,
por fatalidade histórica (à semelhança dos ouriços dos
castanheiros) nos países atingidos pela superprodução industrial,
ou concentração capitalista (Alemanha e Inglaterra), onde a mão do
proletariado, "produto e coveiro do capitalismo", não
teria mais que fazer senão acanhar as castanhas tombadas da árvore
do Capitalismo. O proletariado não precisava, sequer, de "fazer
força", como pediam os velhos profetas bíblicos, "para
ajudar as profecias a realizarem-se", pois bastaria curvar-se
(ante os novos senhores, ou seja Marx e Engels, ditadores do
proletariado, por este guindados às culminâncias do Poder) para
apanhar do chão as castanhas, que na onirologia marxista eram a
representação do socialismo.
Com
efeito, diziam Marx e Engels no seu famigerado "Manifesto
Comunista": "Os comunistas concentram a sua atenção sobre
a Alemanha, porque este país encontra-se às vésperas da revolução
burguesa (determinada pela
concentração capitalista. As
palavras em grifo são acrescentadas por mim, para tornar mais clara
a frase. R.N.),
a
qual dará ao proletariado alemão, mais evoluído que o da
Inglaterra do século 17
e
o da França do século 18, a oportunidade de implantar o socialismo.
Esperamos, pois, que a revolução burguesa seja o prólogo da
revolução proletária".
Este
radioso augúrio foi feito há 127 anos. Os acontecimentos
comprazeram-se em opor o mais cruel e formal desmentido ao
"infalível" profeta do socialismo "científico"
e às suas tão "cientificamente" elaboradas predições. O
proletariado alemão apanhou, realmente, muita castanha, mas de outro
gênero. Em vez de instaurar o socialismo, obedeceu, com servilismo e
entusiasmo de escravos, às ordens de mobilização do kaiser
Guilherme
2.º e do seu Estado-Maior, seguindo para os campos de batalha, a
exterminar os seus camaradas de além-fronteiras e a deixar-se, ele
próprio, exterminar, "para maior glória da pátria" dos
seus amos.
Isto
em 1914. Vinte e cinco anos depois, o mesmo proletariado, em que Marx
e Engels haviam deposto as suas máximas esperanças, como o mais
evoluído do mundo e perfeitamente educado na escola
do "socialismo científico", novamente à via da luta de
classes, conduzente ao socialismo (esse paraíso na Terra anunciado
pelos hierofantes do Marxismo), preferiu deixar-se arrastar, como
carne de canhão, para os campos ensanguentados de Marte, a serviço
dos interesses imperialistas.
A
culpa não coube, porém, é preciso proclamá-lo, somente ao
proletariado alemão, mas,
mais do
que a este, ao "infalível" papa do "socialismo
científico", o qual cometera dois tremendos erros: primeiro,
não compreendera que a consciência de classe, que, como dissera
Marx, o desenvolvimento das forças de produção, do tráfico
mundial, etc., despertam no proletariado, é facilmente anulado pelo
nacionalismo, sentimento estreito e reacionário, diametralmente
oposto aos interesses do proletariado e da humanidade, e por isso tão
acarinhado sempre por todos os ditadores ou candidatos a tais, como
se verifica pelos regimes totalitários dos nossos dias; segundo, os
dois pontífices do "socialismo científico" haviam
transmitido ao proletariado a crença, de que estavam possuídos, de
que não era necessário fazer força para realizar a transformação
social, pois bastar-lhe-ia curvar-se e colher do chão as castanhas
do socialismo caídas de maduras, por fatalidade histórica, do velho
castanheiro do capitalismo. O proletariado alemão acreditou nos
sacerdotes máximos da religião marxista (se o "socialismo"
por eles descoberto era "científico", não podia errar), e
o resultado foi que, quando chegou a hora e, ao contrário do que
havia prognosticado o profeta Marx e repetido o seu sacristão
Engels, se verificou ser preciso fazer força para derrubar as
castanhas do socialismo da árvore do capitalismo, o proletariado
alemão reconheceu que não estava preparado para empresa tão
gigantesca.
Sim,
Marx e Engels erraram e, com eles, o proletariado alemão, que foi
quem pagou as favas, deixando-se, por duas vezes, massacrar nos
campos de batalha por interesses que não eram os seus, mas sim dos
seus senhores, os donos da pátria. A Revolução Social, que os
áugures do "socialismo científico" vaticinaram para
breve, na Inglaterra e na Alemanha, não estalou, até hoje, em
nenhum dos dois países de superprodução capitalista, mas, ao
contrário, o proletariado, em vez de alcançar a sonhada vitória,
sofreu, na segunda daquelas nações, em vez da prognosticada
vitória, duas tremendas derrotas: a primeira, com Rosa Luxemburgo e
Karl Liebknecht, na revolta espartaquista; e a segunda, sob Hitler,
ambas sob o signo marxista. Contradizendo o profeta Marx, a Revolução
estourou, sim, mas no país onde precisamente menos poderiam
esperá-la os marxistas, na Rússia, que acabava de sair do
feudalismo, com um capitalismo incipiente e, portanto, sem nenhuma
das condições exigidas nas profecias de Marx para a revolução.
Estourou na Rússia, porque os trabalhadores, operários, camponeses
e intelectuais, orientados pelos anarquistas e
socialistas-revolucionários (exterminados, mais tarde, por Trotsky,
Lenin e Stalin), não deram ouvidos às profecias de Marx, e por
isso, não esperando que da árvore do capitalismo caísse, por
fatalidade histórica, o fruto sazonado do socialismo, decidiram
colhê-lo eles próprios, desencadeando, num supremo esforço da
vontade, a revolução, e estabelecendo, por meio dela, naquele país,
o socialismo. Este regime durou ali três anos, e não mais, por
culpa dos marxistas, que tiveram artes de ressuscitar o Estado
(sempre o maldito Estado!) que submeteu os sovietes, instituições
eminentemente populares. Depois, de "recuo estratégico" em
"recuo estratégico", fizeram a Revolução atolar-se no
pântano, onde chafurda hoje, do mais odioso dos capitalismos, o
capitalismo de Estado, com maior diferenciação de classes e de
salários do que o dos velhos países capitalistas, e, o que é pior,
com a mais monstruosa tirania de que há memória na História, a da
falsamente chamada "ditadura do proletariado", que outra
coisa não é senão ditadura do novo patriciado, a burocracia do
Partido Comunista, nova classe privilegiada.
A
DITADURA-DO-PROLETARIADO E OS ANARQUISTAS
A
"ditadura-do-proletariado" — eis outra invenção de Karl
Marx, outra obra autêntica do Marxismo, infelizmente, porém, também
má.
Na
"Crítica do Programa de Gotha", redigida por Marx em 1875,
lê-se: "Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista,
estende-se um período
de transformação revolucionária, que vai da primeira à segunda. A
este período corresponde outro, de transição política, durante o
qual o Estado não pode ser outra coisa senão a ditadura do
proletariado". Já antes, no "Manifesto Comunista"
(1847), escrevera: "O primeiro passo na estrada da revolução
proletária é o da ascensão do operariado ao posto de classe
dominante. O proletariado aproveitar-se-á do seu domínio político
para arrancar, pouco a pouco, à burguesia, todo o capital, para
centralizar todos os instrumentos de produção
nas mãos do Estado, quer dizer nas mãos do mesmo proletariado,
organizado como classe dominante".
Mais
tarde, Lenin reafirmaria, na sua obra "O Estado e a Revolução",
a tese marxista: "Só é marxista aquele que estende o
reconhecimento da luta de classes ao reconhecimento da
ditadura-do-proletariado". E, mais adiante: "O proletariado
necessita do Estado apenas durante certo tempo. A supressão do
Estado, como idéia finalista, não é o que nos separa dos
anarquistas. O que nos separa deles é que nós afirmamos que, para
se chegar a essa finalidade, é indispensável utilizar
temporariamente os instrumentos, os meios e os processos do poder
político contra os exploradores, assim
como, para suprimir as classes, é indispensável estabelecer
temporariamente a ditadura da classe
hoje oprimida". "O Estado desaparecerá, à medida que
desapareçam as classes e não haja, por conseguinte,
mais necessidade de oprimir nenhuma
classe. Mas o
Estado não estará completamente morto
enquanto sobreviva o "direito burguês", que consagra, de
facto, a desigualdade. Para que o Estado
morra completamente, é necessário o estabelecimento do comunismo
integral".
Socialismo
sempre
fora, antes de Marx, sinônimo de sociedade
sem classes, isto
é, sem classe dominante e classe dominada, ou seja sociedade
de homens livres e iguais. Mais
tarde, porém, apareceu Karl Marx, que falsificou o socialismo e
inventou a "ditadura-do-proletariado", coisa inteiramente
estranha
ao socialismo.
Depois de Marx, veio Lenin, que completou a obra de falsificação do
socialismo, revelando-nos, em toda a sua hediondez, a verdadeira
fisionomia do marxismo, quando, no seu programa econômico, tornado
público às vésperas da revolução de Outubro (de 1917), consignou
a seguinte definição: "O socialismo nada mais é do que o
monopólio do Estado". Nestas palavras, mostrava-nos Lenin que,
sob a capa da emancipação dos trabalhadores, o que os marxistas
pretendiam era, nada mais, nada menos, do que estabelecer, não a
ditadura do proletariado (pois este, no dia seguinte ao da revolução
expropriadora e niveladora, seria a classe única, portanto toda a
sociedade), mas a ditadura do partido comunista, que fundaria, como
aconteceu, de conformidade com os programas de Marx e de Lenin, um
Estado totalitário, mastodôntico, monopolizador de todas as
atividades humanas, destinado a triturar impiedosamente, com a sua
terrível dentuça, os trabalhadores.
PORQUE
SUBSISTE NA RÚSSIA O ESTADO
Noutro
ponto do mesmo livro, Lenin acrescenta: "A distinção entre
marxistas e anarquistas consiste no seguinte: 1) Os marxistas, embora
se proponham destruir o Estado, não creem isto realizável senão
depois da destruição das classes e como resultado da vitória do
socialismo, que terminará pela destruição do Estado. Os
anarquistas, por seu turno, querem a supressão completa do Estado,
de um dia para o outro, sem admitir as condições que, segundo os
marxistas, oferecem a possibilidade de suprimi-lo. 2) Os marxistas
proclamam a necessidade de o proletariado se apoderar do poder
político, de destruir completamente a velha máquina do Estado e de
substituí-la por um novo aparelho, consistente na organização dos
operários armados segundo o tipo da Comuna. Os anarquistas, por seu
turno, ao reclamarem a destruição da máquina do Estado, não sabem
como nem por que
o
proletariado deve substituí-la, nem que uso deverá este dar ao
poder revolucionário. Condenam inclusive todo uso do poder político
por parte do proletariado revolucionário e repelem a ditadura
revolucionária do proletariado. 3) Os marxistas querem preparar o
proletariado para a revolução, utilizando o Estado moderno. Os
anarquistas rejeitam este método."
Se
cotejarmos estas linhas com as do "Manifesto Comunista" e
de "O Capital", concluiremos facilmente que Lenin falseava,
neste ponto, a tática marxista, pois os marxistas não se propõem
destruir o Estado, mas simplesmente preveem a sua desaparição
natural, como conseqüência da destruição das classes por meio da
ditadura-do-proletariado, o que equivale a dizer do socialismo de
Estado, ao passo que, mais lógicos (pois sabem que as classes não
existem sem o Estado, que é o guardião da classe dominante), os
anarquistas querem destruir as classes por meio da revolução
social, que suprime, simultaneamente, o Estado e as classes. Lenin
não ignorava esta interdependência entre aquele e estas, pois
reconhece claramente, noutro passo da sua obra, que "o Estado é
a arma de que se vale a classe dominante para manter submissa a
classe dominada". E, por saber tudo isto e obrar como se o não
soubesse, é que Emma Goldmann, a grande anarquista russa residente
na América do Norte, que à Rússia regressara expressamente para
tomar parte na revolução de Outubro, e daquele mesmo país se
evadira, ao verificar a impossibilidade de ali realizar obra
emancipadora, desmascarou Lenin, chamando-lhe "o grande jesuíta"
num libelo por ela publicado.
Ora,
se o Estado é, efetivamente, o cão-cérbero da classe privilegiada
ou dominante, o que equivale a dizer do Capitalismo, como o
reconheceram os próprios coriféus do marxismo-leninismo, cabe
perguntar: porque é que na Rússia, onde, segundo os chamados
comunistas moscovitas, só existe uma classe, a dos trabalhadores, e
onde foi suprimido o capitalismo, subsiste o Estado? Das duas, uma:
ou na Rússia, efetivamente, não existem mais classes, e então o
Estado subsiste como sobrevivência miasmática de um tenebroso
passado de opressão, que o atuais administradores mantêm com
sádicos objetivos; ou, ao contrário do que afirmam os comunistas
moscovistas, a Rússia continua dividida em duas classes, e então
compreende-se a sobrevivência do Estado como instrumento
indispensável à classe dominante para impor o seu domínio à
classe dominada. (Sublinhei acima comunistas
moscovitas, porque
os comunistas de Pequim sustentam o contrário, isto é, que a Rússia
se conserva dividida em classes) . De qualquer maneira, a conclusão
só pode ser uma: a Revolução orientada pelos marxistas, que, como
parteira da sociedade nova, deveria ter dado nascimento ao
socialismo, fracassou estrondosamente na Rússia.
Efetivamente,
a Rússia, pelo que se
conclui
dos testemunhos imparciais de todos quantos a têm visitado,
burgueses e revolucionários, incluindo entre estes tantos comunistas
de valor, que emigraram para aquele país, sinceramente decididos a
dedicar-se à grandiosa obra da "construção do socialismo",
e que de lá voltaram, anos depois, totalmente desiludidos, está
cada vez mais distante do verdadeiro socialismo. (A lista dos
desiludidos é enorme, não valendo a pena reproduzi-la aqui, pois
nos tomaria muito espaço. Limitar-nos-emos, por isso, a recordar um
exemplo da casa: Osvaldo Peralva, o qual, tendo sido, por vários
anos, diretor da imprensa do Partido Comunista brasileiro, foi para a
Rússia, a convite dos dirigentes do Komintern, que nele farejavam o
futuro Lenin do Brasil, com o objetivo de fazer o curso de
estado-maior. Osvaldo Peralva permaneceu em Moscou e em Praga cerca
de quatro anos, ao fim dos quais regressou ao Brasil totalmente
desencantado. Em vez do socialismo, que ele esperava ir encontrar na
"pátria do proletariado", o que ele viu ali foi apenas
"fascismo vermelho", conforme confessa no seu terrível
depoimento intitulado "Retrato", obra interessantíssima,
confirmadora do que aqui afirmamos, e á qual se seguiram outros dois
livros do mesmo gênero: "Líderes soviéticos" e "Pequena
História do Mundo Comunista"[6].
O
MARXISMO ROMPEU, PARA SEMPRE, A UNIDADE ENTRE AS CORRENTES DO
SOCIALISMO
Os
acontecimentos demonstraram que as diferenças entre anarquistas e
marxistas não eram tão
superficiais
como fazia crer Lenin. Nas vésperas da Revolução de Outubro, as
colisões entre as duas principais correntes revolucionárias eram
freqüentes nos comícios e em toda a parte onde o povo discutia a
maneira de reestruturar a vida, em seguida à faísca revolucionária,
que todos consideravam iminente. Enquanto os oradores bolchevistas
(marxistas) gritavam: "Os trabalhadores devem organizar o
Estado, de acordo com a concepção de Marx e de Lenin, começando
por encampar todos os meios de produção (a terra, as fábricas, as
minas, etc.) e colocá-los sob o controle imediato do Estado, do qual
ficarão sendo propriedade!", os anarquistas opunham-lhes: "A
terra deve pertencer aos camponeses, que a regam com o seu suor! As
fábricas pertencem, de direito, aos operários que as movimentam! As
minas são dos mineiros, que, com risco da própria vida, extraem das
suas entranhas o minério necessário à sociedade. As escolas devem
ser propriedade dos professores, e só estes devem organizá-las como
entendam, para que elas cumpram a sua finalidade. Em resumo, só os
trabalhadores de todos os ramos, manuais e intelectuais, devem dispor
dos instrumentos de produção, que fazem funcionar, assim como dos
produtos do seu trabalho. O Estado é a arma da classe dominante, e
por isso tem de ser eliminado juntamente com ela. Se os
trabalhadores, ao fazerem a sua revolução, pouparem o monstro, o
parasita, o proxeneta chamado Estado, terão perdido a revolução,
pois o monstro ressuscitará a classe dominante, e os trabalhadores
ficarão, de novo, na mó de baixo!"
Para
resolver estas diferenças, que ameaçavam comprometer a revolução,
convocou-se, nas vésperas da grande comoção social, uma reunião
de representantes das várias correntes revolucionárias, a fim de
encontrar-se uma fórmula que permitisse a colaboração
indispensável entre elas. Ficou assente que se deixaria a cada
corrente a liberdade de organizar a sua própria vida, de
conformidade com os seus próprios pontos-de-vista. Significava isto
que cada uma das 'correntes reconhecia às outras o direito de
praticar, na vastíssima extensão da Rússia, os seus métodos e
sistemas, a título experimental, sem se hostilizarem entre si. Os
anarquistas admitiam que aqueles que se considerassem incapazes de se
administrarem, aceitassem a tutela do Estado, isto é, se submetessem
à direção de outros homens, os governantes, aparentemente iguais a
eles. Por seu lado, os marxistas comprometiam-se a deixar que os
anarquistas e os trabalhadores, operários, mineiros e camponeses,
influenciados por eles, se regessem diretamente, dispensando a tutela
do Estado, cuja legitimidade e critério administrativo não
reconheciam.
De
conformidade com este pacto, os libertários, que haviam ocupado
lugar na primeira linha da revolução, trataram de proceder em
consonância com as suas doutrinas. Assim, por exemplo, na Ucrânia,
a parte mais civilizada da Rússia, os anarquistas organizaram os
operários e camponeses em comunas, por meio das quais procuraram
resolver os problemas concernentes à existência. Ao mesmo tempo,
constituíram um exército voluntário, o qual, sob a orientação de
Maknó, um antigo padeiro anarquista, que passara doze anos nas
masmorras do tsar e fora restituído à liberdade por Kerensky,
revelando-se, mais tarde, um estratega genial, por três vezes salvou
a revolução, derrotando, por meio de hábeis guerrilhas, os
exércitos, muitas vezes superiores em homens e armamentos, de
Denikine. Wrangel e Koltchak, constituídos pelos restos dos
exércitos austro-húngaros da guerra de 1914-18, armados e enviados
para a Rússia pelo capitalismo internacional, com o objetivo de
esmagar a Revolução em marcha.
O
EXTERMÍNIO DOS ANARQUISTAS PELOS MARXISTAS
Pois,
quando era de esperar dos marxistas entronizados no governo central
de Moscou, se não a sua adesão aos libertários, pelo menos um cada
vez maior respeito pela sua dedicação à causa do povo e fidelidade
ao acordo espontaneamente firmado com eles, foi o contrário o que se
verificou. Enciumado com o extraordinário prestígio alcançado
subitamente por Maknó e, de modo geral, pelas organizações
anarquistas dos camponeses e operários da Ucrânia, Trotsky, então
à frente do Exército Vermelho, ordenou uma ação armada contra
eles. E assim, quando os guerrilheiros libertários da Ucrânia, após
haverem infligido tremenda derrota aos invasores, numa batalha junto
ao estreito de Perikope, à qual haviam sido solicitados pelo próprio
Trotsky, se retiravam, com a satisfação do dever cumprido, caem
inesperadamente sobre eles, à traição, dois corpos do Exército
Vermelho, que os destroçam, entre dois braços de uma tenaz. Maknó,
com o corpo crivado de balas, salva-se, como que por milagre, dentro
de um carro de feno, e, alguns dias depois, alcança a fronteira,
refugiando-se na França, onde faleceu, anos depois, tuberculoso.
Estava, desta forma, rota para sempre a unidade das correntes do
socialismo, pela traição dos que mais estridentemente gritam por
unidade. Atos idênticos de traição praticaram, diariamente, contra
os anarquistas, socialistas e republicanos, os bolchevistas, mais
tarde, na guerra de Espanha, onde eles se revelaram o inimigo n.º 1
do povo espanhol e da causa da liberdade.
Desde
os três primeiros anos da Revolução de Outubro, a Rússia
caracteriza-se pelos seguintes aspectos essenciais, que constituem o
maior desmentido às afirmações dos ingênuos que, apesar de tudo,
persistem em ver na Rússia (assim como em Cuba, país igualmente
orientado pelos totalitários do marxismo) um país socialista: Em
primeiro lugar, é o país onde com mais terrível sanha se
tem
perseguido o comunismo e os comunistas (em nenhum outro país do
mundo eles têm sido exterminados em tão elevado número); como nos
países declarados fascistas, designadamente a Alemanha de Hitler, a
Itália de Mussolini, o Portugal de Salazar e a Espanha de Franco,
apresenta ausência total das chamadas "liberdades fundamentais
do cidadão", ou seja a de eleger os seus representantes
(sindicais e outros), a de criticarem na imprensa os atos dos
governantes, a de reunião, a de propaganda de qualquer
ponto-de-vista ou credo considerado "herético", isto é
contrário à "verdade oficial"; a de viajar, até mesmo
dentro dó país, pois, no que concerne à de viajar para o
estrangeiro, o muro de Berlim dispensa-nos de comentários; a
liberdade de criação artística (o drama de Pasternak é bastante
elucidativo); etc., etc. Em resumo, quase meio século depois da
grande gesta revolucionária, do muito alardeado pelo "socialismo
científico" imposto à revolução russa, vemos de pé somente
o que esta nada mais já tem de socialismo e nada daquilo que
tampouco jamais foi ciência.
É
PRECISO RECOMEÇAR!
O
reconhecimento destas verdades ajuda-nos a compreender por que os
totalitários de todo o mundo
se inclinam para os totalitários russos. Sirva-nos de exemplo o caso
de Salazar e Franco, preparando, nos últimos meses, como tem sido
revelado pela imprensa mundial, acordos, respectivamente, com os
governos da China comunista e da Rússia, e chegando ao ponto de
darem instruções à censura para que não permitisse publicar na
imprensa ataques aos regimes daqueles países. Ao mesmo tempo, numa
estranha coincidência, as polícias políticas de Salazar e Franco
deixaram fugir, no mesmo dia e à mesma hora, de três prisões
diferentes, cerca de vinte dos principais dirigentes comunistas. Na
Argentina, Venezuela, Brasil e outras nações, os detritos do
fascismo ("pelegos", como
o povo aqui os designou) e os bolchevistas dão-se acumpliciadamente
as mãos contra os democratas e partidários da liberdade de todas as
tendências. É a solidariedade dos afins.
Some-se
ao que fica exposto a permanência, na Rússia (depois de quase meio
século da Revolução de Outubro), do salariato e das classes
(sinal
mais brutal das suas formas), e não nos restará a
menor dúvida de que a Revolução dirigida pelos marxistas, ou, pelo
menos, inspirada nos ensinamentos de Marx, foi um deus que falhou,
depois de, como Saturno, devorar os seus próprios filhos.
O
Marxismo, com o gélido frio do seu "materialismo dialético",
fez murchar as esperanças no socialismo,
que o generoso calor das utopias acendera no coração da humanidade.
Porém,
como bem disse Nérvio, o proletariado e, mais que o proletariado,
todos os homens, não
importa
quais sejam eles, que anelam, para a sociedade e para o indivíduo,
um destino superior, não
devem
jamais destruir uma esperança, não devem nunca negar um propósito,
senão de maneira nobre e criadora: dando vida a novas
possibilidades, que por si mesmas anulem e tornem supérfluas e
anacrônicas as instituições que se repudiam. Não deve ser nosso
propósito matar uma fé, mas afirmar essa fé: a fé no homem, a fé
na vida livre, à margem dos Salvadores, dos Messias, por mais inspirados
que se creiam.
Por
isso afirmamos: é preciso recomeçar! Traçar, com valentia, um
bosquejo de empresa planetária, que mobilize para a criação livre
todos os homens da Terra, que atraia e seduza a ânsia de ação das
gerações novas, que, ao arco tenso e à flexa inflexível da
vontade afirmativa, fixe um ponto de cobiça.
É
necessário rasgar as velhas e falidas normas, porém despertando, em
seu lugar, firmes e audazes iniciativas. E, sobretudo, que estas se
inspirem sempre na compreensão de que os homens são, não um meio,
mas um fim!
_______________________________________________________________________________________________
Roberto das Neves foi jornalista, escritor e ativista político português. Defensor do anarquismo individualista, colaborou com diversos projetos em Portugal e no Brasil.
Notas:
[1]
Publicado pela Editora GERMINAL (C. P. 15.142 - Rio de Janeiro). e à
venda na Livraria-Editora MUNDO LIVRE.
[2]
Com
este título, publicou Afonso Schmidt, há pouco falecido, um livro,
de que se esgotaram duas edições, com a história desta experiência
anarquista. Depois deste, apareceu e encontra-se à venda, com o
título de "O Anarquismo da Colônia Cecília", de autoria
do eng. Stadler Souza, novo livro com nova e abundante documentação,
editado pela Editora Civilização Brasileira.
[3]
Sobre as referidas utopias e o funcionamento destas coletividades,
leia-se "O Novo Israel", por Augustin Souchy, uma das obras
mais interessantes sobre o assunto, publicada pela Ed. GEMINAL e à
venda nesta Editora.
[4]
Esta obra, uma das maiores da literatura universal e a que mais
contribuiu para que fosse concedido ao seu autor o título de
"Príncipe dos Escritores Filosóficos", num plebiscito
entre os escritores mundiais promovido pela Academia Goucourt e por
Romain Rolland, foi recentemente publicada, em tradução portuguesa
de Maria Angélica de Oliveira, pela Editora GERMINAL. Seguiu-se-lhe,
do mesmo autor e pela mesma Editora. o "Manual Filosófico do
Individualista", ambas à venda nesta Editora
[5]
"Sennacieca Asocio Tutmonda", Avenue Gambetta, 67 — Paris
20.º
[6]
Osvaldo Peralva, a quem os dirigentes comunistas brasileiros,
furiosos com a publicação dos seus terríveis libelos contra os
moscovitas, acusaram de vendido ao "imperialismo ianque",
foi, depois, diretor-superintendente do "Correio da Manhã",
um dos mais desassombrados jornais liberais do Brasil, ao qual soube
imprimir uma orientação, que é um desmentido às atoardas dos
fanáticos partidários de Moscou. Tendo-se esgotado rapidamente a la
edição, "O Retrato" reapareceu em edição de bolso da
Livraria do Globo, de Porto Alegre, e, pouco depois, em novas
edições, em Lisboa.
Bibliografia:
Bernstein,
Edward — "Die
Voraussetzungen des Sozialismus und Aulfgaben der Sozial demokratie"
(recém-editado no Brasil, pela Ed. Zahar, com o título de
"Socialismo Evolucionário").
Dommanget,
Maurice — "Histoire
du Prémier Mai".
Fabbri,
Luigi — "Ditadura
y Revolución".
Fromm,
Erich — "O
Medo à Liberdade" e "Psicanálise da Sociedade
Contemporânea".
Lanti,
E.
— "Chu
Konstruighas Socialismo en Sovetio?" (em Esperanto).
(Constrói-se Socialismo na Rússia?)
Maximoff,
G. P. — "The
Politikal Philosophy of Bakunin (Scientific Anarchism)".
Nettlau,
Max — "Socialismo
Autoritário y Socialismo Libertário" e "Historia de la
Anarquia".
Proudhon,
P. -1 . — "Sistema das
Contradições Econômicas" e "Confissões de um
Revolucionário".
Prunier,
André — "Marxismo
y Anarquismo", in revista "Cenit", p. 1340-43. Read,
Herbert — "Anarquia y Orden".
Rocker,
Rudolf — "Influências
das Idéias Absolutistas no Socialismo", "Nacionalismo y
Cultura" e "Revolución y Regresión".
Russell,
Bertrand — "O
Erro Intelectual do Comunismo".
Sanftleben,
Alfred — "Utopia
und Experiment".
Santos,
Mário F. dos — "Análise
Dialética do Marxismo".
Mendes,
Silva — "O
Socialismo Libertário ou Anarquismo".
Steinberg,
I.
N. — "In
the Workshold of the Revolution". Vóline — "Revolution
Inconu (Histoire Sincère de la Revolution Russe)".
Veja também: