sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Como a "Propriedade Intelectual" Impede a Competição


Por Kevin Carson
Qualquer reflexão sobre os “direitos de propriedade intelectual” deve partir do entendimento de que esses “direitos” minam os direitos de propriedade genuínos e, por isso, são ilegítimos em termos de princípios libertários. Os direitos de propriedade reais e tangíveis resultam de uma escassez natural e são consequência da tentativa de manter a posse de uma propriedade física que não pode estar nas mãos de mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
A noção de “propriedade intelectual”, por outro lado, cria escassez artificial onde não há escassez natural, e só pode ser aplicada invadindo-se propriedades reais e tangíveis e impedindo-se seu dono de usá-las de forma que viole o suposto direito de propriedade intelectual alheio. Conforme ressalta Stephan Kinsella, se um Cro-Magnon particularmente talentoso tivesse sido capaz de patentear a construção de cabanas, seus herdeiros, hoje, teriam o direito de nos impedir de construir nossas próprias cabanas em nossa própria terra, com nossos próprios troncos, até que lhes pagássemos qualquer quantia que exigissem.
A informação digital registrada requer um modelo de negócio ainda mais violador dos genuínos direitos de propriedade do que os direitos autorais tradicionais. O regime de direitos autorais digitais vigente sob os termos da Lei de Direitos Autorais do Milênio Digital (DMCA), do Tratado sobre Direitos Autorais da Organização Mundial da Propriedade Intelectual e do Acordo TRIPs, da Rodada Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), concentra-se inteiramente na tentativa de impedir as pessoas de usarem seus próprios discos rígidos e outros bens como bem entenderem. É efetivamente ilegal, graças a essa legislação, vender hardware capaz de lograr tecnologias de gestão de direitos digitais, ou publicar códigos que habilitem alguém a lográ-la. Conforme Cory Doctorow salienta, “É irônico que, em nome da proteção da ‘propriedade intelectual’, as grandes companhias da mídia estejam dispostas a cometer tal violência contra a ideia de propriedade real – argumentando que, uma vez que tudo que possuímos, desde nossas camisetas aos nossos carros ou nossos e-books, inclui os direitos autorais, as patentes e as marcas registradas de alguém, somos, basicamente, meros rendeiros vivendo na terra de nossos benevolentes mestres, que acharam por bem nos arrendar nossas casas”.
A ubíqua gestão de direitos digitais impede a transferência fácil de conteúdo entre as plataformas, mesmo quando o comprador de um CD ou de um DVD quer, apenas, executá-lo em algum lugar mais conveniente. E a DMCA proíbe legalmente que se contorne essa gestão, mesmo quando, novamente, o comprador quer apenas facilitar seu próprio uso em uma variedade maior e mais conveniente de plataformas.
Não há como exagerar o grau de invasividade exigido pela defesa da “propriedade intelectual” na era digital. A intrusiva e inconveniente gestão de direitos digitais, incorporada nas mídias proprietárias, e a draconiana legislação que criminaliza os recursos técnicos para evasão deveriam deixar isso claro. A tendência lógica do regime de direitos autorais digital foi descrita de forma bastante convincente por Richard Stallman em um conto distópico, “The Right to Read” [O direito de ler, tradução livre] (simplesmente busque no Google – vale muito a pena).
As corporações contam com a legislação, cada vez mais autoritária, para capturar o valor da informação proprietária. Johann Soderberg compara a maneira como as fotocopiadoras eram monitoradas na extinta União Soviética, para proteger o poder das elites naquele país, à maneira como os meios de reprodução digital são monitorados nos Estados Unidos país para proteger o poder das corporações. Interesses econômicos privilegiados, ligados ao Estado, se tornam cada vez mais dependentes desse controle, que, infelizmente para eles, está ficando cada vez mais inexequível, graças ao BitTorrent, à criptografia forte e a servidores proxy. Caso em questão: a “revolta do DeCSS”, em que liminares judiciais contra um código para desbloquear um DVD foram recebidas com uma provocadora publicação deste em blogs, sites e mesmo em camisetas. A impossibilidade de se colocar em prática a proteção aos direitos de propriedade intelectual enfraquece o modelo de negócios que prevalece entre uma grande parcela de empresas privilegiadas e ligadas ao Estado.
Modelo de negócios obsoleto
Antigamente, o imenso valor dos ativos físicos era o suporte estrutural primário para os limites corporativos e, em particular, para o controle das hierarquias corporativas sobre o capital humano e outros ativos intangíveis. Isso vem mudando conforme os ativos físicos têm se tornado menos importantes do que o capital humano. À medida que o capital humano se torna a fonte primária de lucro, a velha lógica de controle institucional das empresas se evapora.
Nas indústrias da informação e do entretenimento, antes da revolução digital e da internet, as despesas iniciais para entrar no mercado giravam em torno das centenas de milhares de dólares ou mais. A velha mídia eletrônica de massa, como colocou Yochai Benkler, era “representada por centros de alto custo e por sistemas baratos e ubíquos, de recepção apenas, nas pontas. Isso conduz a um leque estreito de modelos organizacionais para produção: aqueles que poderiam levantar fundos suficientes para estabelecer um desses centros”. O mesmo era verdade na impressão de periódicos: entre 1835 e 1850, o custo típico para iniciar um jornal aumentou de $500,00 para $100.000,00 – ou de, aproximadamente, $10.000,00 para $2.38 milhões de dólares, em 2005.
A economia em rede, por outro lado, se distingue pela “arquitetura de rede e pelo [baixo] custo de se tornar um participante”. A principal mudança que torna isso possível é que “o capital físico básico necessário para expressar e comunicar uma mensagem entre humanos é o computador pessoal conectado à rede”. A revolução do desktop e da internet significa que a despesa mínima de capital para entrar na maioria das indústrias de informação e entretenimento caiu para uns poucos milhares de dólares no máximo, e que o custo marginal de reprodução é zero. O ambiente de rede, combinado com infinita variedade de programas baratos para criar e editar conteúdos, torna possível ao amador produzir resultados de qualidade antigamente associada somente às grandes editoras e gravadoras. Isso vale para a indústria do software, da música (graças aos equipamentos baratos e aos programas que permitem gravação e edição de alta qualidade), da editoração eletrônica e, em certa medida, até para a indústria de filmes (como demonstrado por tecnologias de edição acessíveis e pelo sucesso de Capitão Sky). A tecnologia dos podcasts torna possível distribuir uma programação de “rádio” e “televisão”, praticamente sem custos, a qualquer pessoa com conexão de banda larga. Uma rede de contribuidores amadores produziu, sem nenhuma centralização, uma enciclopédia, a Wikipédia, que a própria Enciclopédia Britannica vê como uma rival. Conforme Tom Coates coloca, “a brecha entre o que pode ser realizado em casa e o que pode ser realizado no ambiente de trabalho diminuiu dramaticamente nos últimos dez ou quinze anos”.
O mesmo vale para as notícias, com a contínua expansão das redes de amadores em foros como a Indymedia, atuações alternativas como as de Robert Parry e de Grag Palast, e tropas iraquianas e americanas disponibilizando notícias em primeira mão em blogs, exatamente ao mesmo tempo em que as redes de televisão tradicionais estão fechando.
Problemas com agências, secessão nas empresas
Isso tem enfraquecido profundamente as hierarquias corporativas nas indústrias da informação e do entretenimento, enquanto cria enormes problemas nas agências. Conforme o capital humano eclipsa o capital físico como a principal fonte de lucro, torna-se cada vez mais viável para os ativos de capital humano migrar atrás de mais benefícios. Pessoas podem exercer suas habilidades em qualquer lugar, formar “empresas dissidentes”, e deixar seus antigos empregadores em conchas vazias, com pouco mais que o nome da companhia. Houve alguns casos famosos, como a saída de Maurice Saatchi da agência de publicidade Saatchi e Saatchi; e a perda, pela Salomon Brothers, de um grupo de negociantes responsável por 87% dos lucros da empresa. Conforme Luigi Zingales, que escreve sobre a teoria das organizações, colocou, “Se assumirmos a posição de que os limites de uma empresa são o ponto até o qual a alta gerência tem a capacidade de exercer o poder (...), o grupo não era uma parte integral de Salomon. Ele meramente alugava as salas, o nome e o capital de Salomon, e entregava uma parte de seus lucros pelo aluguel”.
O economista David Prychitko afirmou sobre as empresas "secessionistas" na indústria de tecnologia, nos anos 1990, quando elas mal começavam: 
“As velhas empresas atuam como embriões das novas. Se um trabalhador ou um grupo deles não está satisfeito com a empresa existente, cada um tem a habilidade que ele ou ela controla e pode deixar aquela com essas habilidades e abrir uma nova. Na era da informação, está se tornando mais evidente que um chefe não pode controlar os trabalhadores como o fazia quando prevalecia a linha de montagem. As pessoas não podem mais ser tratadas como burros de carga, pois o valor do processo de produção está cada vez mais incorporado nas habilidades intelectuais do trabalhador. Isso apresenta uma nova ameaça à empresa tradicional se ela recusa a organização participativa.

"O surgimento da secessão nas empresas de computação nos leva a questionar até que ponto nosso atual sistema de direitos de propriedade sobre ideias e informações protege os chefes em outras indústrias contra o poder de pressão dos trabalhadores. Talvez nosso atual sistema de patentes, direitos autorais e outros direitos de propriedade intelectual impeça a competição e fomente o monopólio, como argumentam alguns economistas austríacos. Direitos de propriedade intelectual podem, também, reduzir a probabilidade de secessão nas empresas em geral, e desencorajar mudanças para formatos mais participativos e cooperativos”.
Neste ambiente, a única coisa separando os velhos dinossauros da informação e da mídia de seu colapso total são seus supostos direitos de propriedade intelectual – pelo menos até onde eles podem ser protegidos na prática. A posse da propriedade intelectual se torna a nova base para o poder das hierarquias institucionais e o principal pilar para os limites corporativos.
A prevalência cada vez maior e os custos minguantes das máquinas produzidas em pequena escala, junto com os meios distribuídos de levantar capital agregando pequenas doações pela colaboração em massa, significam que, em larga medida, os mesmos fenômenos ocorrem com a produção física.
Sem a propriedade intelectual, em qualquer indústria onde o equipamento de produção básico seja amplamente acessível, e as conexões entre as bases tornem o gerenciamento de cima para baixo obsoleto, é provável que a produção autogerida e cooperativa substitua as velhas hierarquias administrativas. A revolução da rede, se todo o seu potencial for concretizado (como escreveu James Bennet em um artigo apropriadamente intitulado “O fim do capitalismo e o triunfo da economia de mercado”), conduzirá a uma redistribuição substancial do poder e do dinheiro, que irá dos produtores industriais de informação, cultura e comunicação do século XX – como Hollywood, a indústria fonográfica e, talvez, as empresas de difusão e alguns dos gigantes das telecomunicações – para um conjunto amplamente difuso de populações ao redor do mundo, e para os atores do mercado que vão construir as ferramentas para tornar essa população mais capaz de produzir seu próprio ambiente de informação em vez de comprá-lo pronto.
Pagando pelo nome
Outro efeito da mudança de importância dos ativos tangíveis para os intangíveis é que uma crescente parcela dos preços dos produtos consiste em aluguéis incorporados da propriedade intelectual e de outros direitos de propriedade artificiais, ao invés dos custos materiais de produção. Tom Peters, no “The Tom Peters Seminar”, gostava de discursar sobre a crescente parcela do "valor" de produtos composta de “efemeridade” e “intelecto” (isto é, a parcela do preço final que consiste no tributo devido àqueles que detêm a propriedade intelectual) ao invés do valor dos custos de trabalhos e de material. Para citar Michael Perelman, “A chamada ‘economia sem peso’ tem mais a ver com os poderes legislados da propriedade intelectual que o governo concedeu às grandes corporações. Por exemplo, empresas como Nike, Microsoft e Pfizer vendem coisas que tem alto valor relativo ao seu peso somente por causa de seus direitos de propriedade intelectual que os isolam da competição”.
Mas a propriedade intelectual, como já vimos, está se tornando cada vez mais inexequível. Como resultado, a propriedade do conteúdo está se tornando cada vez mais insustentável como base para o poder institucional corporativo. E podemos esperar uma brusca diminuição da parcela dos preços das mercadorias que se deve ao aluguel de direitos de propriedade artificiais.
Um componente importante do modelo de negócios que prevalece sob o capitalismo corporativo de hoje é a oferta de plataformas abaixo de seu custo, junto com a venda de peças de reposição e acessórios patenteados etc., com enorme margem de lucro. Então compra-se um celular por pouco ou nada, com a obrigação contratual de usar somente um pacote de serviços por muitos anos; alguém compra uma impressora razoavelmente barata que usa caríssimos cartuchos de tinta; compra-se um glicosímetro barato com tiras para medir a glicose que custam $100,00 a caixa. Desbloquear o telefone para usar um plano de serviços diferente, ou manufaturar cartuchos de tinta ou tiras para medir a glicose genéricos, competindo com as versões originais, é ilegal. O mesmo se dá com a manufatura de peças de reposição, para um carro ou um aparelho, em competição com a empresa que detém a concessão.
A “propriedade intelectual” também serve como um baluarte para a obsolescência planejada e para altas despesas de produção. Os aparelhos são geralmente planejados para impedir consertos. Quando o técnico lhe diz que o conserto de sua máquina de lavar vai custar tão caro que não vale a pena fazê-lo, ele está dizendo a verdade. Mas ele falha ao não acrescentar que essa situação reflete um esquema deliberado: a máquina poderia ser planejada de forma modular, de modo que a parte defeituosa poderia ser substituída de forma simples e barata. E se o fabricante fosse sujeito a uma competição irrestrita, o incentivo normal do mercado seria para que fizesse isso.
Retirando-se as restrições legais, seria mais lucrativo oferecer acessórios e substitutos genéricos competitivos para outras plataformas de empresas. E, em face dessa competição, haveria uma forte pressão na direção de esquemas de produtos modulares que fossem simples de consertar e aptos a utilizar componentes e acessórios modulares das plataformas de outras empresas. Ausentes as restrições legais das patentes, um aparelho planejado para frustrar a facilidade de conserto através da incompatibilidade com outras plataformas de empresas arcaria com uma desvantagem competitiva.
Em nível global, a propriedade intelectual exerce o mesmo papel protecionista para as corporações transnacionais que as tarifas exerceram nas antigas economias nacionais. Dificilmente é uma coincidência que os setores industriais dominantes na economia corporativa global – software, entretenimento, biotecnologia, farmacêutico e eletrônicos – dependem, necessariamente, da propriedade intelectual. E o foco central do regime neoliberal, que tem sido falsamente identificado com o “livre comércio” e “livre mercado”, está no fortalecimento do regime jurídico da propriedade intelectual como fonte primária de lucro.
Em escala global, as patentes fecham as corporações transnacionais em um permanente monopólio sobre a tecnologia produtiva. A principal motivação no regime de propriedade intelectual do GATT é assegurar o monopólio coletivo das corporações transnacionais (TNCs) sobre tecnologia avançada e impedir que haja uma concorrência independente no terceiro mundo. Seria, como escreve Martin Khor Kok Peng da Third World Network, “impedir na prática a difusão da tecnologia no terceiro mundo, e aumentar tremendamente o monopólio de direitos autorais dos TNCs, ao mesmo tempo freando o desenvolvimento potencial da tecnologia do terceiro mundo”.
Chegando ao fim
Mas, para repetir, a boa notícia é que, tanto na economia doméstica quanto na global, esse modelo de negócios está condenado. A mudança do capital físico para o humano como fonte primária de capacidade produtiva em várias indústrias, junto com a queda dos preços e a dispersão generalizada da posse dos bens de capital, significa que os empregadores corporativos estão cada vez mais fracos e somente mantêm o controle sobre o processo de produção física através de ficções legais. Quando muito da verdadeira produção física é terceirizada para a pequena loja independente (seja ela uma loja chinesa ou um fornecedor da GM) a corporação se torna um "nó" redundante na rede, que pode ser contornado. Conforme descreveu o blogueiro David Pollard, do ponto de vista de um historiador futuro, em 2015:
 “Aqueles que forneciam caros serviços terceirizados passaram rapidamente a ser considerados intermediários desnecessários (...) As grandes corporações, tendo abandonado tudo que supunham ser ‘capacidade não essencial’, aprenderam, para sua tristeza, que na economia da informação conectada o valor de suas capacidades essenciais era muito menor que o inflado valor de seu estoque, e perderam muito de sua parte do mercado para novas federações de pequenos negócios.”
Considerando todo o dano que causa, a propriedade intelectual não é realmente necessária, nem mesmo como incentivo para inovação. F. M. Scherer, analista industrial, argumentou nos anos 1990, baseado em uma pesquisa com 91 companhias, que aproximadamente 86% de todas as inovações de processos ou produtos teriam sido desenvolvidas por conta “da necessidade de permanecer competitiva, do desejo por uma produção eficiente e do desejo de expandir e diversificar suas vendas”.
E os direitos autorais não são mais necessários para a criação artística que as patentes são necessárias para as invenções. No mundo do software aberto, muitas empresas que conseguem ganhar dinheiro com serviços auxiliares, embora seu conteúdo em si não seja proprietário. Por exemplo, a Red Hat ganha dinheiro fora do sistema operacional Linux customizando o software e oferecendo suporte personalizado ao cliente. A Phish tem encorajado ativamente seus fãs a compartilhar sua música livre de custos, enquanto ganha dinheiro através de concessões e apresentações ao vivo. A banda Radiohead disponibilizou um álbum recente para download, recebendo somente contribuições voluntárias através do que acabou se tornando uma gloriosa caixinha no PayPal.
Uma vez que a propriedade intelectual não é necessária para encorajar a inovação, isso significa que seu principal efeito prático é causar ineficiência econômica ao impor o custo de um monopólio sobre o uso de uma tecnologia existente.
Em qualquer caso, para aqueles que defendem o libertarianismo por causa dos princípios da propriedade e da não-agressão, não interessa se a propriedade intelectual é ou não necessária para tirar proveito de certas formas da atividade econômica. Esse é o mesmo argumento usado pelos protecionistas: certas empresas não seriam lucrativas se não fossem protegidas por tarifas. Mas ninguém tem o direito de lucrar à custa dos outros através do uso da força. Em particular, ninguém tem o direito de lucrar usando o Estado para impedir que os outros façam o que quiserem com suas canetas e papéis, discos rígidos ou CDs. Um modelo de negócios que não é lucrativo sem intervenção governamental deve falhar.
Traduzido por Ordem Livre


Kevin Carson é um anarquista individualista e teórico mutualista contemporâneo cujos trabalhos incluem "Studies in Mutualist Political Economy", "OrganizationTheory: A Libertarian Perspective" e "The Homebrew Industrial Revolution: A Low-Overhead Manifesto", todos disponíveis online. Ele é associado sênior do instituto Center for a Stateless Society (c4ss.org).

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O Último Ensaio "Político"


Escrito por Anna Morgenstern

Uma das coisas que torna as polêmicas políticas diabolicamente difíceis e geralmente desviante de modo desonesto é de que as máquinas de propaganda da sociedade estatista evacuam o contexto e evisceram o conteúdo, a fim de desinformar-nos e manipular-nos. Ou seja, os eventos nos são dados num vácuo, contra um campo de hipóteses ideológicas implícitas, mas nunca evidentes. Uma vez aceitemos esse vácuo, estamos em um prejuízo para entender o que realmente acontece e, pois, o que fazer a respeito, seja tática ou estrategicamente. Esse plano de fundo de hipóteses também constrange nossas possibilidades conhecidas, tornando difícil escolher coerentemente quer meios ou fins, no curto ou longo prazo. E dado que as hipóteses estão habilmente incorporadas, elas raramente são contestadas. Poder-se-ia chamar isso de mito do não mito.

Em geral, esse mito é habilmente trabalhado com aparentes contradições, mas sempre levando-nos em alguma direção de que ajudará a classe dominante, na base do “cara eu ganho, coroa você perde”. Um olhar sobre as eleições presidenciais dos Estados Unidos dos últimos 30 anos ou mais é um exemplo quase óbvio demais. De um lado sempre tem um sujeito corporativista, militarista, socialmente conservador que é devedor de favores a Wall Street… e então, aí está o candidato do Partido Republicano.

Sim, estado da Virgínia, há diferenças entre a “esquerda” e a “direita” oficial. Essas diferenças, todavia, ficam “divididas” de tal modo que um segmento da classe dominante se beneficia independentemente de quem você apoie. Eu tendo pessoalmente a preferir a tirania econômica indireta à tirania pseudorreligiosa de controle do prazer, e suspeito que a maioria de vocês também preferem, sendo vocês os devassos sem ambição que conheço e amo. Ainda assim nada há para se comemorar. A outra vantagem para os nossos pretensos senhores da criação das duas “alas” incoerentes e contraditórias em si própria é que, numa democracia, eles tendem a revezar-se na administração das coisas, de maneira que cada facção da classe dominante tem suas chances em ser mais favorecidas. Há guerra nos céus, mas você não está convidado para o jantar da vitória. Você pode até *ser* o jantar da vitória, de um modo ou de outro.

Tanto quanto eu posso dizer, os dois maiores problemas sociais que temos na sociedade estatista são Guerra e Pobreza. E, como seria de esperar, raramente esses problemas são tratados diretamente.

Quase todos os “problemas” sociais que o mundo enfrenta hoje são um resultado direto ou indireto da pobreza. A falta de acesso a água potável, falta de acesso a cuidados de saúde, crime, até mesmo poluição estão, todos, relacionados com a pobreza. E as “soluções” políticas que são oferecidas são programas tipo colcha de retalhos de quebra-galhos que aliviam um ou mais dos sintomas de pobreza, mas são projetados para fazer o mínimo possível para reduzir a pobreza em si. Muitos deles criam muito mais pobreza no longo prazo, gerando todos novos problemas para a classe dominante “resolver”. Ao advogar uma solução política para qualquer desses microproblemas fora de contexto, você está jogando nas mãos da classe dominante que diz, à maneira de Agostinho: “Eliminemos a pobreza, mas não ainda”. A interpretação mais caridosa do esquerdismo político poderia dizer que a esperança é a de que, dando-se pouco a pouco poder ao povo, ele poderá reverter o estrangulamento da classe dominante sobre a economia de forma gradual. Como, todavia, observou a respeito da escravidão William Lloyd Garrison: “O gradualismo na teoria é perpetuidade na prática”. A ideia de “onerar os ricos” é sem sentido. Os ricos nunca irão se onerar. Não pode haver um estado no qual a classe dominante aja contra seus próprios interesses de modo total e consistente.

Na verdade, há na esquerda política oficial, muito pouca sensibilização ou apoio para políticas que prejudicariam diretamente a elite corporativista, mediante tirar seus subsídios e privilégios. O raciocínio ou justificativa parece ser que “precisamos dos ricos para formar uma base tributária a ser usada para ajudar os pobres”. A ironia seria hilária, não fosse pelas implicações concretas.

O resultado inevitável, naturalmente, é que a classe dos pobres se expande enquanto a classe média fica espremida e, finalmente, torna-se “caro demais” manter todos os programas que mantém o pobre confortável e “medidas de austeridade” são tomadas. Então, quando o pobre naturalmente se rebela, a ala oficial da “direita” vai tagarelar acerca de como o pobre deseja se aproveitar da classe média, e estão dispostos a tomar medidas violentas para tanto. Ou o quê? Morrer de fome? Viver em miséria abjeta? Bem, está certo, Chefe. A “direita” adora falar acerca da moralidade da propriedade privada, mas na verdade não é sincera. Os ricos não têm respeito pela propriedade privada das classes pobre e média. Usam isso como um pretenso porrete contra os pobres forçados à miséria e contra a classe média que naturalmente deseja um pedaço dos espólios da pilhagem estatista. Quando, porém, seus próprios interesses são ameaçados, bem, então são todos a favor de socorros financeiros e empréstimos garantidos pelo governo e coisas do tipo. Toda a justificativa para a existência do banco central (ou quase um banco central, como na Lei Nacional dos Bancos (National Bank Act) , muito antes do vil Federal Reserve existir, ou da frequente “suspensão dos pagamentos em espécie” antes disso) é pura e simplesmente “assistencialismo” para os ricos. Proteger o sistema bancário de falência sistêmica significa permitir aos bancos emprestar o que é, essencialmente, dinheiro roubado para pessoas ricas para empreendimentos arriscados a que elas não ousariam lançar-se com suas próprias economias. Não há outra maneira de um banco poder falir, mas isso nunca é explicado desse modo.

Propriedade Intelectual” é outra forma de protecionismo para os ricos à custa da propriedade real das classes pobre e média. Eles querem dizer a você o que você pode fazer com sua própria propriedade, argumentando serem donos do conteúdo e das ideias embutidas nessa propriedade. Pois eles dizem isso, e tem advogados, armas de fogo e dinheiro.

A pergunta a ser feita é “em vez de (fingir) combater todos esses problemas sociais associados à pobreza, por que simplesmente não acabamos com a pobreza?” Um homem em situação confortável não pode ser economicamente coagido. Isso, porém, é exatamente aquilo de que a classe dominante tem medo. Eles preferem ser bilionários num mundo com pobreza maciça do que ser trilionários num mundo sem pobreza porque, neste último, eles serão apenas outra pessoa a quem ninguém deve nada, de quem ninguém precisa particularmente. Eles desejam sentir-se importante, querem que você dependam dele. Querem que políticas econômicas a qual beneficia os negócios dos ricos para resultar em benefícios para os pobres seja verdade, e eles vão matar milhões de pessoas para assegurar que assim seja.

O que nos traz ao outro problema importante, a Guerra. A guerra se conclui em três objetivos principais para a classe dominante. Primeiro, destrói excesso de capital e de trabalho fora do jardim murado dos que estão por dentro. Segundo, é um meio de coagir membros renegados da classe dominante que decidam afastar-se demais das regras básicas aceitas implicitamente do jogo. Terceiro, mobiliza, dentro do país, apoio à classe dominante. Os membros desta podem justificar mais intrusão e incursão nos assuntos comuns de “seus” cidadãos durante tempo de guerra, argumentando tratar-se de situação de emergência, e que essas medidas são para o bem dos cidadãos como um todo.

São os dois primeiros desses benefícios que levaram o General Smedly Butler a declarar em seu livro “War is a Racket” (A guerra é uma extorsão, tradução livre). É o terceiro benefício que levou Randolph Bourne a declarar “A Guerra é a Saúde do Estado” (War is the health of the State). O fato é que as pessoas comuns não se beneficiam da guerra, mesmo quando seu governo específico “vence”. Algumas delas vão morrer, todas elas vão pagar, tanto diretamente por meio de aumento de tributos quanto, mais comumente, indiretamente por meio de “gastos deficitários” que se transformam em inflação monetária, a mais regressiva forma de tributação (eis porque a “direita” política a prefere à tributação direta). Por cima disso, sofrem a devastação moral de serem estupeficadas pela matança de milhares ou até milhões de pessoas.

Portanto, se soluções políticas não podem superar a devastação global da pobreza e da guerra, o que pode superar? A autonomia pessoal é o único modo de podermos minar e derrubar a classe dominante.

Você não pode simplesmente levantar-se e mudar o sistema. O que pode fazer, porém, é subvertê-lo. Se pessoas o suficiente subverterem as coisas por muito tempo, o sistema muda de fato. Para fazer isso, você tem de parar de comprar a ideia de que o sistema, como tal, é legítimo, que ele pode reivindicar direitos sobre o seu comportamento. Subversão, sedição e sabotagem. Ação direta em busca de seus objetivos. Isso não apenas traz resultados como possibilita a você viver de novo como ser humano. Você será, se não completamente livre, liberto da armadilha imoral de jogar fora sua vida tentando convencer a classe dominante a ir contra os próprios interesses dela.


Anna O. Morgenstern é anarquista e escreve em seu blog "Tranarchism". Seus interesses incluem história econômica, psicologia social e teoria de organização voluntária.

Traduzido por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme.
Revisado por Rodrigo Viana.



quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

O Subsídio da História


Por Kevin Carson
Um número considerável de libertários comenta a respeito da escala de subsídios e proteções em favor das grandes empresas, e sua importância estrutural para a forma existente de capitalismo corporativo e no estreito entrelaçamento de interesses corporativos e estatais na atual economia capitalista de estado. Prestamos menos atenção, contudo, no papel da coerção estatal no passado, nos séculos anteriores, no assentamento das fundações estruturais do sistema atual. A medida na qual as concentrações atuais de riqueza e poder corporativo são o legado de injustiças do passado, eu chamo de subsídio da história.
O primeiro e, provavelmente, o mais importante subsídio da história é o roubo da terra, pelo qual a maioria dos camponeses foi privada de seus justos direitos de propriedade e se transformaram em arrendatários forçados a pagar aluguel com base em títulos artificiais de “propriedade” das elites privilegiadas pelo estado.
Obviamente, todos esses títulos artificiais não fundamentados em apropriação por meio do trabalho individual são completamente ilegítimos.
Como Ludwig von Mises destacou em Socialism, o funcionamento normal do mercado nunca resulta num estado de coisas no qual a maior parte da terra de um país torna-se “propriedade” de diminuta classe de proprietários ausentes (rendatários) e a maioria camponesa paga aluguel pela terra na qual lavra. Onde quer que isso seja encontrado, é resultado de coerção e roubo no passado.
Murray Rothbard, em A Ética da Liberdade, explicou a injustiça da propriedade feudal:
 Mas suponha que, séculos atrás, Batista estava cultivando o solo e, portanto, possuindo legitimamente a terra; e então aquele Albuquerque aparece e se estabelece perto de Batista, reivindicando, através do uso de coerção, o título da terra de Batista, e extraindo pagamento ou "aluguel" de Batista pelo privilégio de continuar a cultivar o solo. Suponha que agora, séculos depois, os descendentes de Batista (ou, para nosso propósito, outros familiares ou chegados) estão cultivando o solo, enquanto os descendentes de Albuquerque, ou aqueles que compraram seus títulos, ainda continuam a exigir tributos dos agricultores modernos. Sobre quem recai o verdadeiro direito de propriedade em tal caso? Deveria estar claro que aqui... temos um caso de agressão contínua contra os verdadeiros donos — os legítimos proprietários — da terra, os agricultores, ou camponeses, pelo dono ilegítimo, o homem cujo título original e contínuo da terra e dos seus frutos veio da coerção e da violência. Do mesmo modo que o Albuquerque original era um agressor contínuo do Batista original, os camponeses modernos estão sendo agredidos pelos possuidores do título da terra derivado de Albuquerque. Neste caso, que poderemos chamar de "feudalismo" ou "monopólio da terra", os proprietários de terras feudais ou monopolistas não possuem título legítimo à propriedade. Os "locatários" atuais, ou camponeses, deveriam ser os donos absolutos de suas propriedades, e, como no caso da escravidão, os títulos da terra deveriam ser transferidos aos camponeses, sem compensações aos proprietários monopolistas.
Portanto, em vez de defender todos os títulos de terra existentes em nome da “inviolabilidade da propriedade” e protestar quando algum governo esquerdista estabelece uma reforma agrária que transfere títulos de terras feudais para os camponeses, Rothbard era a favor de 1) dividir as plantações do Sul e dar a escravos americanos libertados “quarenta acres e um burro,” e 2) transferir os latifúndios de oligarquias fundiárias na América Latina para os camponeses.
No Velho Mundo, especialmente na Grã-Bretanha (onde a Revolução Industrial começou), a expropriação da maioria camponesa por uma oligarquia latifundiária politicamente dominante ocorreu ao longo de vários séculos no final da Idade Média e início do período da modernidade. Começou com o cerco dos campos abertos no final da Idade Média. Sob a dinastia Tudor, feudos da Igreja (especialmente terras monásticas) foram expropriados pelo estado e distribuídos à aristocracia fundiária. Os novos “proprietários” despejaram ou cobraram aluguéis extorsivos dos camponeses.
Expropriação do Campesinato
O Parlamento da Restauração (Restoration Parliament) do século XVII levou a cabo uma série de “reformas” agrárias que aboliram completamente a posse de terra feudal — mas só por cima. Havia duas maneiras pelas quais o parlamento poderia ter abolido o feudalismo e reformado a propriedade. Poderia ter tratado os direitos de posse consuetudinários do campesinato como título genuíno de propriedade no sentido moderno, e em seguida ter abolido seus aluguéis. O que na realidade fez foi tratar os “direitos de propriedade” artificiais da aristocracia fundiária, da teoria jurídica feudal, como direitos reais de propriedade no sentido moderno; às classes fundiárias foram dados títulos oficiais por lei, e os camponeses foram transformados em arrendatários, de modo arbitrário, sem restrições consuetudinárias aos aluguéis que poderiam ser cobrados. O mais importante componente dessa “reforma” foi o Estatuto de Fraudes (Statute of Frauds) de 1677, que revogou direitos de posse de aforamento, tornando-os nulos para as cortes reais.
Finalmente, os Cercamentos Parlamentares (Parliamentary Enclosures) dos séculos XVIII e início do XIX despojou o campesinato de seus direitos aos recursos comuns. As classes proprietárias da Inglaterra viam a independência econômica proporcionada pelos recursos comuns como uma ameaça, primeiro a uma oferta adequada de trabalho assalariado agrícola na própria terra da oligarquia fundiária e, depois, a uma adequada oferta de trabalho em fábrica com disposição para trabalhar durante longas horas com baixa remuneração. A literatura das classes proprietárias da época foi muito explícita quanto a sua motivação: as classes trabalhadoras não trabalhariam duro o bastante ou de forma barata o bastante enquanto tivessem acesso independente aos meios de subsistência. Elas teriam de ser tornadas tão pobres e famintas quanto possível para se dispuser a aceitar trabalho em que termos que lhes fosse oferecido.
Uma versão do mesmo fenômeno ocorreu no Terceiro Mundo. Nas colônias europeias onde já vivia um grande campesinato nativo, por vezes, os estados concediam títulos semi-feudais a elites fundiárias para que cobrassem aluguel dos que já viviam na terra e a cultivavam. Um bom exemplo é o latifúndio, que prevalece na América Latina até os dias de hoje. Outro exemplo é a África Oriental Britânica. Os 20% mais férteis do Quênia foram roubados pelas autoridades coloniais e o campesinato nativo foi expulso, para que a terra pudesse ser usada para lavoura com fins econômicos por colonos brancos (usando o trabalho do campesinato expulso, obviamente, para trabalhar). Quanto àqueles que permaneceram em sua própria terra, foram “estimulados” a entrar no mercado de trabalho assalariado por um rígido imposto comunitário que tinha de ser pago em dinheiro. Multiplique esses exemplos por cem e terá uma vaga ideia da enorme escala de roubo nos últimos 500 anos.
Contrariamente à versão florida de Mises acerca da Revolução Industrial em Ação Humana, os donos de fábricas não foram de modo algum inocentes no tocante a tudo isso. Mises afirmou que os investimentos de capital sobre os quais o sistema de fábricas foi construído vieram, em grande parte, de trabalho duro e de trabalhadores frugais que economizaram seus próprios ganhos como capital de investimento. Na verdade, porém, eles foram parceiros menores das elites fundiárias, com muito de seu capital de investimento vindo da oligarquia fundiária Whig ou dos frutos do exterior do mercantilismo, da escravatura e do colonialismo.
Além disso, os empregadores das fábricas dependiam de rígidas medidas autoritárias do governo para manter os funcionários, reduzindo o seu poder de barganha. Na Inglaterra, a Lei do Assentamento (Laws of Settlement) funcionou como uma espécie de sistema de passaporte interno, impedindo os trabalhadores de viajar para fora da terra de onde nasceu sem permissão do governo. Desse modo, os trabalhadores foram impedidos de “votarem com os pés”, isto é, procurar empregos mais bem remunerados entre outro lugar. Você pode pensar que isso teria funcionado em detrimento dos empregadores em áreas insuficientemente povoadas, como Manchester e outras áreas do norte industrial. Mas não tema: o estado veio em socorro dos empregadores. Como os trabalhadores foram proibidos de migrar por iniciativa própria em busca de melhores salários, os empregadores foram liberados da necessidade de oferecer salários altos o suficiente para atrair agentes livres. Em vez disso, eles foram capazes de “contratar” trabalhadores leiloados pelas autoridades da Lei dos Pobres (Poor Law) da região, em termos estabelecidos por conluio entre as autoridades e os empregadores.
Discriminação Legalizada Contra os Trabalhadores
As Leis das Associações (Combination Laws), as quais proibiram os trabalhadores de se associarem livremente para negociar com os empregadores, foram aplicadas inteiramente pelo direito administrativo, sem quaisquer proteções do direito consuetudinário devido processo legal. E só foram aplicadas contra associações de trabalhadores, e não contra associações de empregadores (tal como a lista negra dos “problemáticos” e a fixação combinada dos salários). A Lei do Tumulto (Riot Act) de 1714 e outras legislações de policias estaduais durante as Guerras Napoleônicas foram usadas para conter a ameaça de revolução interna, essencialmente tornando a classe trabalhadora inglesa em população inimiga ocupada. Tal legislação criminalizou a maioria das formas de associação.
Até associações fraternais de ajuda mútua, benefícios para funerais, assistência médica e outros, funcionavam em face da hostilidade do estado, de acordo com historiadores do movimento da sociedade amicais, tais como Bob James e Peter Gray. Sob os termos da Lei da Associação, sociedades amicais foram submetidas à estrita supervisão judicial para evitar que a produção manual direta fosse organizada para permutar entre os desempregados, ou que os benefícios da sociedade fossem desvirtuados e funcionassem, de fato, como um seguro-desemprego para trabalhadores em greve. A Lei das Sociedades Correspondentes (Corresponding Societies Act), aprovada mais ou menos na mesma época, proibia todas as sociedades que ministrassem juramentos secretos ou que fossem unidas a nível nacional (confederadas)
Portanto a Revolução Industrial foi, de fato, construída em cima de um sistema de pilhagem legal na qual os empregadores estavam diretamente envolvidos. A forma tomada pelo sistema fabril seguramente reflete essa história. Numa Grã-Bretanha composta de pequenos produtores camponeses, sem quaisquer restrições à livre associação, os trabalhadores teriam sido livres para empregar suas próprias propriedades como capital por meio de instituições de crédito mútuo. A administração ausente e a hierarquia provavelmente teriam sido muito, muito menos prevalente e o sistema fabril, onde existisse, seria muito menos opressivo e autoritário.
Um processo similar ocorreu na colonização das sociedades de colonizadores como os Estados Unidos e a Austrália, por meio do qual as potências coloniais e suas elites fundiárias tentaram reproduzir padrões feudais de propriedade. Em tais colônias, o estado antecipou-se na posse da terra e restringindo o acesso dos trabalhadores. Por vezes deu título de terra desocupada a especuladores de terras privilegiados, que eram capazes de cobrar aluguel daqueles que dela se haviam apropriado (os proprietários legítimos).
E. G. Wakefield, um teórico britânico sobre o colonialismo, do início século XIX defendia tal preferência com argumentos semelhantes àqueles com os quais as classes proprietárias e empregadoras da Grã-Bretanha haviam apoiado o Cerceamento: era mais fácil empregar mão-de-obra qualificada em condições favoráveis ao empregador. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, ele escreveu:
 Nas colônias, os trabalhadores disponíveis são escassos. A escassez de trabalhadores para contratar é a reclamação universal das colônias. Ela é a única causa, tanto dos altos salários que tornam o trabalhador colonial despreocupado, quanto dos salários exorbitantes que por vezes prejudicam o capitalista. . . Onde a terra é barata e todos os homens são livres, onde todos os que assim desejam podem obter um pedaço de terra para si próprio, não apenas o trabalho se torna muito estimado, no tocante à partilha do produto do trabalhador, mas há a dificuldade em obter mão-de-obra a qualquer preço que seja.
Consequentemente, “poucos, mesmo dentre aqueles cujas vidas são raramente longas, podem acumular grandes quantidades de riqueza.”
O discípulo de Wakefield, Thomas Merivale, escreveu sobre o “urgente desejo por trabalhadores mais baratos e subservientes — para uma classe à qual o capitalista pudesse ditar as condições, em vez de estas serem ditadas a ele.”
A preempção da terra foi elemento importante da política colonial no início da história americana. Gary Nash, em Class and Society in Early America relatou concessões de terra na época colonial dos Estados Unidos comparáveis às de Guilherme I na Inglaterra após a Conquista. Em Nova Iorque, por exemplo, as maiores propriedades concedidas pela administração colonial britânica (depois que os Novos Países Baixos foram adquiridos nas Guerras Anglo-Holandesas) variavam de centenas de milhares a mais de um milhão de acres. Governadores continuaram a conceder extensões de terra na casa de centenas de milhares de acres a seus protegidos, até já bem dentro do século dezoito. Sob o governador Fletcher, cerca de três quartos de terras disponíveis foram concedidas a 30 pessoas.
Albert Jay Nock, em Our Enemy, The State (Nosso Inimigo, o Estado), argumentou que “desde a época do primeiro assentamento colonial até os dias atuais, os Estados Unidos tem sido considerado como um campo praticamente sem limites para especulação nos valores de aluguéis.” Muitas figuras de destaque no período final da colônia e inicial da República foram investidores proeminentes nas empresas de muitas propriedades, inclusive George Washington nas Companhias de Ohio, Mississippi, e Potomac; Patrick Henry na Companhia Yazoo; Benjamin Franklin na Companhia Vandalia, e assim por diante.
Em A Ética da Liberdade, Rothbard condenou tal preempção (“açambarcamento da terra, onde reivindicações arbitrárias de terra ainda não lavrada são usadas para manter os primeiros trabalhadores fora daquela terra”) nas mesmas bases de sua crítica aos senhores feudais. Ele recomendou a revogação de todos os títulos atuais relativos à terra não cultivada e a abertura dela para a livre apropriação. Além disso, em casos em que os atuais titulares de hipoteca e donos de terras rastreiam seu título a concessões de terra pelo estado, a reivindicação apropriada encontra-se com aqueles que primeiro se apropriaram da terra, ou de seus herdeiros e cessionários
Homestead Act (tradução livre, A lei da Propriedade) de 1862, uma aparente exceção a essa tendência geral, foi, na verdade, apenas outro exemplo. A maior parte da terra, em vez de ser reclamada nos termos da Lei da Propriedade, foi leiloada para o maior licitante. Mesmo para terras amparadas por essa lei, de acordo com Howard Zinn, a taxa de 200 dólares estava além do alcance de muita gente. Em decorrência, grande parte da terra não foi em absoluto ocupada com base em princípios lockeanos, e sim, inicialmente, foi para os especuladores antes de ser dividida e revendida aos nela estabelecidos. E em comparação com os 50 milhões de acres abrangidos pela lei da propriedade, 100 milhões de acres foram dados como concessões de terra para ferrovias durante a Guerra Civil — livre de custos! Em outras palavras, as classes privilegiadas ficaram com o filé, e os proprietários normais ficaram com o osso.
Mantendo o Sistema em funcionamento
O que descrevi aqui são apenas os atos iniciais de coerção e roubo sobre o qual nossa forma atual de capitalismo industrial foi fundada. Obviamente as coisas não pararam por aí. Uma vez que o sistema estava em funcionamento, ele dependia dos esforços permanentes do estado para manutenção de uma estrutura legal de privilégio, baseada em direitos artificiais de propriedade e escassez artificial: cumprir os direitos absenteístas de terra vaga e não cultivada; barreiras de entrada no setor bancário, tornando o crédito artificialmente caro e escasso; os direitos de propriedade artificiais de patente e direitos autorais; e por aí vai. E a partir do final do século XIX a forma moderna de capitalismo corporativista dependia de intervenção ainda mais maciça do estado: subsídios para transporte de longa distância para tornar as áreas de mercado e o tamanho das empresas artificialmente amplas; os efeitos cartelizadores de patentes e tarifas; cartelização reguladora e indústrias e setores inteiros da economia tanto trazidos à existência ou com mercado garantido financiado pelo pagador de impostos pela perpétua economia de guerra pós-1941.
Ao contrário da mitologia popular, o New Deal não foi uma renúncia a um algum estado idílico preexistente de “laissez faire”. Nunca houve qualquer coisa remotamente parecida com laissez faire. O capitalismo — isto é, o sistema histórico existente tal como realmente se desenvolveu — tem tido muito pouco a ver com mercados livres e muito a ver com roubo e coerção.
Isso não quer dizer que todas as vias para o progresso econômico por meio do empreendedorismo independente foram fechadas. Trata-se de uma luta muito mais árdua do que seria num livre mercado e a área de atuação é injustamente posta em favor dos grandes jogadores.
Na busca por instituir um genuíno livre mercado, os libertários não deviam perder de vista esses fatos. Que lições deveriam os libertários aprender com o relato histórico acima?
Primeiro, nada há de “libertário” sobre a tendência instintiva em correr à defesa dos títulos de propriedade existentes sem levar em consideração a justiça. Como Karl Hess disse no Libertarian Forum, em 1969,
 [O] libertarianismo deseja promover os princípios de propriedade mas . . . de modo algum deseja defender . . . toda propriedade que hoje é chamada de privada. Grande parte dessa propriedade é furtada. Muito dela é de direito questionável. Toda ela está profundamente entrelaçada com um sistema de estado imoral e coercitivo que tolerou, construiu e lucrou com a escravatura; que expandiu e explorou uma política externa imperial e colonial brutal e agressiva, e continua a manter as pessoas numa dura relação servo- senhor até concentrações de poder político-econômico.
Em segundo lugar, na defesa de reformas de livre mercado, temos de considerar o papel dessa herança histórica de injustiça (o subsídio da história) na determinação dos vencedores do sistema atual. Uma “reforma de livre mercado” que simplesmente foque nos beneficiários do assalto, ratificando os privilégios do passado obtidos pelo furto e do qual se beneficiam, irá meramente recompensar a injustiça e proteger seus ganhos ilícitos.
De um ponto de vista ético libertário, o modelo padrão de “privatização” (venda de propriedade do estado para uma grande empresa privada conectada politicamente, em condições das mais vantajosas para a empresa) é, portanto, altamente duvidosa. Isso é especialmente verdadeiro ao se considerar que muito da propriedade foi criada, em primeiro lugar — à custa do pagador de impostos — para o propósito principal de subsidiar os custos operacionais das grandes empresas. Grande parte das empresas de serviço público e infraestrutura de transporte estatal no Terceiro Mundo foram criadas, a mando das elites financeiras transnacionais, como uma precondição para investimento de capital ocidental. E a odiosa dívida adquirida, geralmente por ditaduras corruptas agindo em conluio com a finança global é, então, usada pelo Banco Mundial para chantagear aqueles países a vender sua infraestrutura para as mesmas empresas transnacionais que ele foi criado para beneficiar — geralmente por centavos de dólar.
Um Modelo Adequado de Privatização
O modelo de privatização de Rothbard é muito superior: anula os direitos de propriedade do estado, tratando-a como sem dono, sujeita à apropriação imediata por aqueles que efetivamente nela mesclam seu trabalho. Isso significaria que universidades estatais seriam transformadas em propriedades dos alunos ou do corpo docente, como cooperativas de consumidores ou produtores. Empresas de serviços públicos do governo se tornariam cooperativas de consumidores pertencentes aos pagadores de impostos e fábricas estatais seriam entregues aos trabalhadores e reorganizadas como cooperativas de trabalhadores.
Temos também de ser cautelosos quanto aos argumentos pseudo-coaseanos de que “não importa” de quem a propriedade originalmente tenha sido furtada, porque ela acabará nas mãos do proprietário “mais eficiente”. É essencialmente o mesmo argumento usado para a desapropriação eminente. Independentemente das mãos na qual a propriedade termine, os legítimos proprietários e seus descendentes — que nunca receberam indenização — estão excluídos do valor do que foi furtado deles. E até os modos mais ineficientes de organização da produção são bastante “eficientes”, comparativamente falando, quando se conta com a vantagem competitiva de trabalhar com propriedade roubada.
Ademais, não existe coisa tal como “eficiência” genérica; a eficiência depende da finalidade do proprietário. A técnica mais eficiente para a agricultura de subsistência em um pequeno quintal — economizando em terra mediante melhoramento do solo e adição de insumos intensivos em trabalho — é totalmente diferente do que um oligarca feudal, que produz com objetivo de lucrar com acesso a mais terra roubada do que ele poderia usar possivelmente e, geralmente, mantendo a maior parte de sua terra roubada fora de uso por completo. De qualquer modo, o legítimo proprietário, sem dúvida, acharia muito mais “eficiente” alimentar-se na sua própria terra do que passar fome numa favela por não poder comprar até mesmo o alimento mais barato oriundo dessas plantações “eficientes” ocupando a terra roubada dele.
O atual sistema de economia política que tantos apologistas corporativistas se referem como “nosso sistema de livre mercado” tem-se caracterizado desde o começo pelo roubo. Precisamos ser cautelosos com “reformas de livre mercado” efetuadas pelos ladrões.
Elas equivalem, na prática, a permitir que os assaltantes — mãos ainda cheias de pilhagem — digam: “Tudo bem, sem roubos, a partir.. . de agora!”.
Traduzido por Murilo Otávio Rodrigues Paes Leme. Revisado por Rodrigo Viana / Matheus Pacini.


Kevin Carson é um anarquista individualista e teórico mutualista contemporâneo cujos trabalhos incluem "Studies in Mutualist Political Economy", "OrganizationTheory: A Libertarian Perspective" e "The Homebrew Industrial Revolution: A Low-Overhead Manifesto", todos disponíveis online. Ele é associado sênior do instituto Center for a Stateless Society (c4ss.org).



domingo, 15 de dezembro de 2013

O Que é Mutualismo?


Por anarcho-baker blog
Mutualismo é anarquista
Rigorosamente falando, o mutualismo deve ser pensado como anarquista. Enquanto a maioria dos conceitos principais do mutualismo pode ser aplicado dentro da estrutura do estado, esse modelo socio-econômico é, em disso disso, frequentemente referido como "distributismo". Proudhon e a maioria dos outros mutualistas proeminentes tem sido anarquistas (na verdade, Proudhon cunhou tanto os termos "anarquista" quanto "mutualista") porque o mutualismo, sendo uma filosofia de empoderamento comum, é mais consistentemente compreendido a impedir o controle e o poder do estado.

Mutualismo é anti-capitalista
Se aceitarmos o mais recente uso da palavra "capitalismo" como sinônimo de "troca livre", mutualistas poderiam ser chamados de "capitalistas". No entanto, mutualistas preferem, em vez disso, usar a definição histórica de capitalismo, que significa "um sistema onde o poder econômico é dominado por uma pequena minoria que controla o acesso aos meios de produção e, através desse poder, capaz de explorar os muitos trabalhadores que se tornaram subordinados e obedientes a eles para sobreviverem". Mutualistas usam essa definição porque põem em causa o pressuposto de que um pequeno número de organizações extensas e hierárquicas iriam manter um vasto poder econômico de forma total no verdadeiro sistema de livre troca.

Mutualismo é ser "libertário estrito"
Mutualismo não é uma oposição apenas contra o poder violento e político do estado, mas contra o poder econômico extremamente rico nos sistemas capitalistas contemporâneos. Como uma oposição a mais do que o mero poder violento, mas também do poder econômico, sua filosofia da reciprocidade é, também, frequentemente aplicada por pensadores contemporâneos contra o poder social. Embora seja verdade que o próprio Proudhon foi um racista, anti-semita e proponente da visão conservadora de família dominada por homens, os mutualistas modernos rejeitam, sem equívocos, estas posições e enquadram o nosso mutualismo como uma oposição ao poder social incluindo o racismo, sexismo, homofobia e outra formas de privilégio social e opressão.

Mutualismo é crítico da propriedade
Desde a famosa (e infame) acusação de Proudhon de que a "propriedade é roubo", em 1840, os mutualistas tem sido radicais à margem em nossa compreensão de propriedade. Nem abraçando-a, do modo como ela existe, e tampouco condenando-a completamente. Como socialistas, mutualistas geralmente asseguram que toda propriedade deve, inicialmente, derivar do trabalho, como a própria propriedade é meramente um instrumento social para assegurar ao trabalho o recebimento de seu produto completo. Contudo, nós consideramos que a "mistura do trabalho" com um recurso natural não faz somente desse recurso o verdadeiro "produto" do trabalho e são cautelosos sobre direitos de longo, absoluto ou inflexíveis sobre terra ou outros recursos naturais. Mutualistas também estão dispostos a distinguir entre reivindicações de propriedade criadas para proteger um direito do trabalhador ao seu produto e daqueles apenas destinados a esgotar os bens comuns por motivos de antagonismo ou entesouramento. Essa concepção de propriedade é frequentemente denominada de "ocupação e uso", sugerindo que uma pessoa não pode legitimamente possuir mais do que ele ou ela poderia por para usar diretamente, embora essa seja uma simplificação da teoria que é, geralmente, reduzida, a grosso modo, à ideia de que sair do próprio lar para ir à um supermercado seja para ser interpretada como abandono do mesmo. Também estamos conscientes de que a história do mundo pode deixar nenhuma dúvida em relação a atual distribuição de títulos de propriedade: estão manchados com o sangue de milhares de injustiças do passado e raramente pode ser considerado justa em tudo. Por isso, nós muitas vezes somos a favor de medidas de expropriação para remediar ou invalidar esses ganhos ilícitos, porém manter céticos a respeito de sua adequação universal e julgá-los baseado de caso por caso. Nós também nos opomos aos direitos de propriedade "artificiais" como a propriedade intelectual.

Mutualismo é o livre mercado
Mutualistas abraçam o livre mercado como um sistema justo e eficaz de sistema econômico. Por causa de nossa compreensão filosófica da Teoria do Valor Trabalho (o que, para nós, é descritiva ao invés de estritamente normativa, embora somos contrários a condições onde não possa, de forma imparcial, se manter, tal como monopolismo), vemos as trocas de mercado como um sistema de comércio de labuta para labuta, de esforço para esforço e de perda para perda. Vemos justiça na troca igual de labuta e dificuldade, como um verdadeiro sistema igualitário e justo de benefício mútuo. No entanto, nós abraçamos o conceito de economia do dom e asseguramos que o livre mercado irá produzir frequentemente donativos de economia como uma parte de sua operação natural (como a competição favorece aqueles que irão produzir gratuitamente sem a necessidade de tentação). Portanto, não nos opomos a moeda como um meio de troca, embora nós frequentemente preferimos uma forma de moeda de acordo mútuo, cuja a produção não possa ser monopolizada como são os metais preciosos.

Mutualismo é comunismo proprietário
Proudhon certa vez se referiu ao mutualismo como "a síntese do comunismo e da propriedade". Comunismo - isto é, o comunismo verdadeiro e completo - se refere a uma sociedade sem estado, sem classes e sem uso do dinheiro onde os meios de produção são acessíveis para todos e operado para o benefício de todos. Embora os mutualistas não sejam contra o dinheiro, troca ou a posse excludente dos meio produtivos por si só, nós reconhecemos e acolhemos os muitos benefícios de organizações comunistas e tentamos integrá-los dentro de um ambiente de mercado geral. O conceito de "ajuda mútua", do qual o próprio mutualismo, em parte, chama o seu nome, é um lugar onde muitas pessoas voluntariamente utilizam do recurso comum para criar um maior grau de acesso comum para cada um do que teria estado disponível anteriormente. O banco mútuo e a sociedade fraternal são dois desses modelos, a antiga forma baseada na união de títulos de propriedade e acordo mútuo para criar uma forma mais flexível de dinheiro e crédito e, este último, baseado na união de recursos financeiros para criar um mecanismo de redistribuição ou contratar bens e serviços comuns a custo reduzido. Outros modelos, incluindo oficinas comunitárias ou "hackerspaces" e hortas comunitárias são também sugeridas. O que separa essas instituições da "caridade" é que elas não são baseadas não na beneficência, mas o garantido o direito de acesso. Com efeito, elas constituem a criação voluntária de um espaços comunistas integrais ou parciais para tratar a fraqueza no comportamento de trocas de mercado.

Mutualismo é local de trabalho democrático
Se instituições de ajuda mútua são pensadas como "cooperativas de consumo", onde cada cliente da instituição (em que está comprando, por meio de trabalho ou capital, um direito de acesso a algo) é um co-proprietário igual, logo "empresas" mutualistas podem ser pensadas como "cooperativas de trabalhadores". Mutualistas asseguram que a hierarquia é tanto subjetivamente não livre, injusta e exploratória, bem como objetivamente ineficiente e deveria ser evitada. Mutualistas acolhem muitas formas de organização, incluindo o estigmérgico (que descreve, a grosso modo, uma economia de contratantes independentes de empregados autônomos) e "adocracia" ou "arranjo democrático" (que, a grosso modo, descreve uma ordem espontânea se desenvolvendo a partir de um espaço não regulamentado baseado no acesso comum e motivo comum). Contudo, quando a coalescência dentro de uma empresa é benéfica por razões de divisão do trabalho, escala e outros motivos organizacionais, mutualistas rejeitam a hierarquia como uma autoridade imposta problemática. Preferimos empresas operadas democraticamente e de propriedade igualitária, onde cada trabalhador tenha uma palavra a dizer na organização da instituição e um direito à sua quota total de sua produção. Apoiamos a liderança emergente de forma natural como preferível para a liderança eleita, mas ainda preferimos o sistema majoritário de liderança eleita do que a hierarquia imposta e, de modo geral, rejeitamos o trabalho assalariado como um sistema para privar o trabalhador da sua recompensa pela sua completa contribuição ao processo produtivo.

Mutualismo é comunitário
O mutualismo geralmente envolve a síntese sobre as duas conceptualizações da empresa em ser a mais inclusiva "cooperativa multi-stakerholder", que tenta conceder igualdade de opinião no controle da empresa para todos que são afetados por suas ações, incluindo não apenas clientes e trabalhadores, mas fornecedores da própria empresa e de outros elementos da comunidade em que ela esteja e opera. O mutualismo abraça a cooperação e, um tanto paradoxal, considera a própria concorrência uma forma de cooperação amigável onde cada competidor tenta brilhar mais do que o outro na excelência de atendimento para a comunidade. Igualmente, mutualistas de forma geral apoiam os "direitos coletivos" da organização federativa, que demanda autonomia não apenas para cada indivíduo, mas para cada coletividade de pessoas, de todas as organizações de ordem maior. Como cada indivíduo pode retirar-se de uma organização, então também pode cada estado, condado, cidade, distrito ou bairro retirar-se de um agrupamento em que ele pertence. Portanto, o mutualismo é anti-imperialista e mantém sua oposição à hierarquia. Mutualistas também reconhecem que existem muitas formas de propriedade naturalmente obtida e mantida pela comunidade ou pelo público, e não se opõem ao surgimento natural de casos de propriedade comum ou pública, sustentando de que podem propriamente ser considerados propriedade da comunidade toda que a criou e a utilizou.

Mutualismo é descentralista
O mutualismo suspeita da burocracia e de dimensão extensa. De acordo com os princípios federativos, os mutualistas acreditam que a distribuição da autonomia de toda uma organização qualquer é fundamental para a liberdade. Não consideramos que "comunidades" devam ser geográficas, abarcamos conceitos como a Phyle grega (uma comunidade distribuída baseada na identidade ou no propósito comum). Abraçamos a conceptualização da sociedade como sendo uma malha de sobreposição de comunidades, ao invés de linhas geográficas firmes no mapa, como questão chave para a decentralização do poder. Ao tornar comunidades conceptualmente flexíveis, a tendência ao controle burocrático permanente e rígido é menor, levando indivíduos e grupos com maior poder e escolha a buscar suas necessidades e desejos organizacionais. Valorizamos o dinamismo e flexibilidade da associação de pequena escala e de mobilidade no sentido de evitar a estagnação e captura pelo auto-interesse burocrático.

Mutualismo é pró-ativo
A práxis mutualista não se baseia na insurreição (embora não se oponha de forma estrita a isso, ela a vê de forma constantemente ineficaz) nem em revolução aberta (como os inimigos da sociedade mutualista, de longe, excedem-nos em poder e capacidade neste momento). Ao invés disso, ela é baseada no que Proudhon denominou de dissolução do estado no mecanismo social, ou o que Lenin chamou de "poder dualista" e Konkin chamou de "contra-economia". O princípio essencial da organização mutualista é construir uma sociedade melhor e mais livre, aqui e agora, que possa servir como uma alternativa para o sistema atual. O mutualismo pode, e deveria, competir com o capitalismo e o estatismo, esvaziando-os, tornando-os desnecessários e libertar as pessoas para deixá-las em prol de uma vida mais desejável. Mutualistas enfatizam a primazia de defender novas estruturas sociais da destruição ou cooptação pela antiga ordem sobre a hostilidade agressiva, vendo esta como como geralmente ineficazes, até que o poder e popularidade de novas instituições tenham superada as antigas. Nós, geralmente, evitamos a participação no sistema político existente, exceto como uma tentativa de manter a nova sociedade livre da interferência e não buscar o uso da estrutura de poder existente para reformar a sociedade. Nossa estratégia é pratica, em que reconhecemos o poder superior do nosso inimigo e devemos lutar contra onde ele não possa ver ou alcançar, e baseado em princípios, no que nos opomos a imposição forçada de qualquer ordem socio-econômica, mesmo a que vemos superior.

Mutualismo é sobre reciprocidade
"Reciprocidade na ordem social é a formula pela justiça", como Proudhon colocou. De modo fundamental, os mutualistas acreditam no tratamento de todos os seres humanos do modo que nós mesmo gostaríamos de ser tratado, e vice-versa. A partir dessa expectativa vem nossa condenação da agressão e violência, do poder político, da exploração econômica e da opressão social. É o fundamento de nossa estima pelo descentralismo, comunitarismo e igualitarismo, como igualdade e solidariedade são as melhores ferramentas para garantir o respeito mútuo e reciprocidade. É a base tanto pela nossa condenação quanto pelos louvores do conceito de propriedade, já que é tanto uma ferramenta por assegurar o sustento quanto obstruí-lo. A reciprocidade é a lente através do qual os mutualistas julgam todas as coisas.

Então, o que é o mutualismo?
Dito de forma sucinta, é uma filosofia que busca empoderar, tanto através da defesa da justiça quanto do apoio mútuo solidário, todos os indivíduos a viver suas vidas exatamente como eles bem entenderem, sem privar quaisquer outros da igual capacidade de fazer o mesmo. É a reconcepção fundamental da estrutura socio-econômica da civilização, baseado em maximizar a escolha e autonomia e eliminar a imposição da autoridade, não só por causa do poder violento, mas pela necessidade econômica, convenção social, rigidez burocrática e todas as outras circunstâncias gerais que forçam alguns a submeter suas vidas aos interesses de outros sem a reciprocidade dessa obrigação. É uma forma de socialismo libertário, isto é, a esquerda da maioria dos anarquistas de mercado e a direita da maioria dos anarquistas comunistas, na tentativa de sintetizar os melhores elementos de suas ideias em uma combinação mais justa e viável. Seus meios são graduais, porém busca fins radicais.

Traduzido por Rodrigo Viana



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