Por
Luis Diego Fernandez
Desde
os últimos meses de 2013 e antecipando o que vem no primeiro
semestre de 2014 [N. T.: artigo publicado em Janeiro de 2014] parece se formar um panorama em relação a
novidades editoriais sobre livros que se referem, de alguma forma ou
outra, a tradição do chamado anarquismo individualista, a saber: a
edição pela primeira vez em espanhol de Formas
de vida en común sin estado ni autoridad e
Sexualismo revolucionario
(Editorial Innisfree) textos principais de Émile Armand, quase de
forma simultânea com a aparição de "Contra
los pastores, contra los Rebaños",
de Albert Libertad (Pepitas de Calabaza), difusor da ideia
anarco-individualista com o citado Armand. Na mesma direção podemos
adicionar a raridade da primeira revista impressa e digital sobre
anarquismo individualista que será lançada em Março, com
colaboradores espanhóis e latino americanos, assim como as filas das
numerosas re-edições da obra de Henry David Thoreau: "Walden
ou a vida nos bosques"
(Errata Naturae), Desobediência
Civil
(Editorial
Innisfree)
ou
o primeiro volume de Diario
(Capitán
Swing).
A persistência da semente do anarquismo individualista se deve
também ao êxito editorial contínuo de Michel Onfray que, em
Filosofar
como un perro
(Capital Intelectual), seu recente livro, mostra a ideia de
pós-anarquismo, atualizando ao último de Foucault, assim como em
Deleuze e Guattari. E não devemos esquecer que Christian Ferrer
publicará um reescrito de seu inescapável ensaio libertário
intitulado Cabezas
de tormenta
(2006) pelo selo Pepitas de Calabaza durante a primeira metade do
ano.
O
que responde esta avalanche editorial de inéditos, clássicos,
reedições, revistas ou ideias simplesmente que transitam a frondosa
e singular árvore do anarco-individualismo? A diminuição do
anarco-comunismo ou do gesto coletivista do anarquismo canta sua
obsolência? Certamente, em grande medida o mesmo que seu dogmatismo,
teimosia e exigência extrema de realizar o paraíso na terra. Os
anarquistas individualistas, nesse sentido, foram os irmãos
desobedientes, com sua semente ácrata comum (crítica à autoridade,
ao poder centralizado do estado, às formas de dominação nas
diferentes esferas), mas reivindicaram, antes de tudo, a
transformação do indivíduo e suas práticas morais, uma visão
excêntrica e estetizante, um maior dandismo moral e, em alguns
casos, uma dissidência a respeito à propriedade e ao mercado (de
onde se defenderá, como em Proudhon, pela posse por parte dos
trabalhadores a respeito do valor de seu trabalho).
Introduzindo
um pouco de história, não custa sempre lembrar que o termo grego
an-archos revela o sem fundamento, sem poder, sem essência, sem
autoridade, mas não a desordem como normalmente se pensa de modo
súbito ou precipitado. O que não está, é a arché, a raiz. Pode
existir a ordem sem a autoridade? Talvez possa-se responder com outra
pergunta que Etienne de la Boétie, amigo de Montaigne, formulou em
seu Tratado
da servidão voluntária:
por que queremos ser governados? O que nos concede para querer que
nos governem? Por que servimos? Uma pergunta tão anômala quanto
radical, tão extrema quanto certeira e irrecorrível, que realizou
no século dezesseis aos quinze anos de idade.
A
partir da pergunta pelo poder e autoridade (ou sua falta) é trafegar
pela tradição anarquista. Linhagem antiga que remonta a figuras ou
comunidades como os essênios, os anabaptistas, Lao Tzé, ou
Diógenes. Já dentro do século dezenove é geralmente dito que duas
grandes correntes são as vigas do anarquismo (do qual também
emergem o liberalismo e o marxismo). Essa dupla sessão, esses dois
blocos são formas igualmente lícitas para compreender a via
libertária: por um lado, o anarco-comunismo, cujos pensadores
modelares foram Piotr Kropotkin e Mikhail Bakunin e, no outro
sentido, o anarco-individualismo, no qual pode atribuir filósofos
como Max Stirner, Henry David Thoreau ou Friedrich Nietzsche. Um caso
singular como o de Pierre-Joseph Proudhon pode ser contestado por
ambas linhagens, porém o certo é que o mutualismo propagado pelo
pensador francês, na verdade, se assemelhava a uma forma de
anarco-individualismo. Inclinação que podemos ampliar a outros
representantes de marca saxônica como Herbert Spencer, Benjamin Tucker ou Lysander Spooner. O anarquismo é um, porém suas variações
são tão abundantes e até contraditórias como as cores do
arco-íris: anarca-feminismo (Emma Goldman), anarco-sindicalismo
(Errico Malatesta, Noam Chomsky), eco-anarquismo (Murray Bookchin, os
ambientalistas), anarco-capitalismo (Murray Rothbard), anarco-primitivismo
(John Zerzan, Unabomber), anarco-queer (Judith Butler, Beatriz Preciado) e é possível seguir com algumas distinções mais ou
menos sofisticadas. No caso do ramo anarco-individualista que parece
florescer já faz um tempo, é possível verificá-lo já em 1793,
nas próprias ideias de William Godwin, um dos pais fundadores da
filosofia anarquista. Suas características parecem seguir válidas:
racionalismo, anti-estatismo, auto-didatismo, comunitarismo,
liberdade sexual são algumas delas. As figuras possíveis destas
variações sempre foram aquelas que preconizaram que o indivíduo
em primeiro lugar (como testemunho e exibição da vida emancipada) e
logo o social (o grupo, o comunitário), ali teremos desenhos
conceituais como a “associação de egoístas” de Max Stirner e o
mutualismo de Proudhon, diferennte do federalismo de Bakunin e do
comunismo anárquico de Kropotkin (“tudo é de todos”).
O
anarquismo individualista que vemos nos textos revisados de
pensadores como Emile Armand e Albert Libertad, assim como da grande
tradição estadunidense, o chamado “anarquismo bostoniano” de
Thoreau, Emerson e J. Warren, defendeu sempre a auto-organização
sem hierarquias, a crítica ao trabalho assalariado, aos monopólios
e oligopólios (produto de sua aliança com o Estado que os favorece)
porém nunca a crítica à propriedade por si mesma nem ao mercado
livre entre trabalhadores. Demolição dos privilégios, porém
louvor da “posse”, o anarquismo individualista sempre teve um
atrito amistoso com o liberalismo, recordemos que Proudhon e Bastiat
se sentaram juntos (na esquerda) na assembléia legislativa após a
Revolução Francesa. Por esse olhar tampouco temos que cair na
redução liberal: no anarco-individualismo não existe a submissão
ao aparato jurídico clássico liberal, a tradição da norma, nem um
certo puritanismo (dito por Max Werber). Sim, existirá a linha do
chamado anarco-capitalismo de modo impreciso ou libertarismo de modo
eficaz e claro, que se assenta de modo mais firme desde a década de
setenta nos Estados Unidos, fazendo pouco caso do conceito de
propriedade lockeana assim como do jusnaturalismo, que se vê em
temas de filósofos como Robert Nozick e Murray Rothbard. O
libertarismo atual, como emergente deste entrelaçamento entre
anarquismo e liberalismo, reivindica para si a tradição
anarco-individualista no século vinte vista através do prisma da
Escola Austríaca de Economia (F. A. Hayek e Ludwig von Mises) e, de
certa forma, reivindica o conceito de liberdade negativa: nem
interferência e nem obstrução da ação. Hoje a versão possível
do anarquismo individualista vem precisamente pelo certo auge do
libertarismo (sua expressão possível nestes tempos) produto das
críticas aos partidos tradicionais, da representação ou das novas
formas de vida.
O
âmago do anarquismo individualista revisto é seu aporte hedonista,
seu direito ao prazer, tal como diz Christian Ferrer em Cabezas
de tormenta:
“A eugenia se cruza neste ponto com a crítica ao matrimônio
burguês hipócrita e com a aplicação do direito do próprio corpo.
O discurso anarquista sobre a sexualidade é complexo, porque nele se
cruza uma analítica sexual de índole científica, uma preocupação
social de raiz médico-higienista, e ideais racionais fomentadas pelo
romantismo, que não exclui uma dose de voluptuosa erotização
discursiva, na que se destacam os chamados 'armandistas', seguidores
das doutrinas individualistas de E. Armand. Os armandistas ou os
leitores da brasileira Maria Lacerda de Moura difundiram o direito ao
prazer, como direito 'natural' dos seres humanos”.
De
modo que o hedonismo libertário sempre encontrou na tradição
anarco-individualista um território mais fértil e amigável que no
ascetismo monástico anarco-comunista. O próprio Michel Onfray,
individualista, é um fiel confidente do louvor do vinho, da
gastronomia e do erotismo. Por outro lado, a indústria pornográfica
é terreno quase exclusivamente habitado pelos libertarians,
como chamam nos Estados Unidos os cultuadores do libertarismo. De
modo que a rigidez moral de certas tradições ácratas (crítica ao
tabaco, álcool e drogas) aqui tem sido amortecidas com o
libertinismo, porém em ambos os casos compactuam a mesma lógica
amorosa, pacifista e em muitos casos ambientalista, em referência ao
apoio de causas como o naturismo ou o veganismo. Nesse sentido,
também deve ser marcado que o anarco-individualismo sempre tem sido
feminista, a recordar uma grande expoente como Voltairine de Cleyre.
A educação da mente livre será crucial para empoderar as mulheres
na igualdade total entre gêneros.
O
vigor do anarquismo individualista encontra sua semente nestes dias,
precisamente pela sua heterodoxia, pela sua ruptura com ímpio dos
cânones e pela vontade livre de falar através de condutas visíveis
e vivas. O efêmero do voluntarismo comunitário do anarquismo
individualista não é seu ponto fraco, mas ao contrário, seu forte,
assim diz Armand: “Do ponto de vista individualista do anarquismo,
parece difícil mostrar-se hostil a seres humanos que, contando
somente com sua vitalidade individual tentando realizar todas ou
parte de suas aspirações. Para não crer no valor demonstrativo das
'tentativas de vida em comum', os anarquistas individualista fazem
tal propaganda em favor das 'associações voluntárias', que
encontram muitas dificuldades para renegar dos lugares em que suas
teses são praticadas com menos restrições que em qualquer outro
local.”
Toda
mudança social ocorre primeiro pela transformação do indivíduo,
ali bradam essas vozes resgatadas. Não é negligenciável esse
retorno em algum sentido, a singularidade adiada lamenta pela sua
vontade para protestar e celebração de amor à vida.
Traduzido
por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.
Luis Diego Fernández possui formação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires, é ensaísta e leciona na Universidad Di Tella. Para acessar o seu blog clique aqui.
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