Por Marja Erwin
Por toda a cultura ocidental, existe uma tensão entre a ideia de que nosso valor é inato e a noção de que o valor das pessoas depende de sua utilidade para os fins dos outros. Utilidade, porém, não é algo que existe em si mesma, mas se encontra sempre num tempo e num local, para pessoas dentro de um sistema social complexo. Alguém que controle um fator importante dentro do sistema social (como uma patente ou um monopólio de telecomunicações) pode utilizá-lo ou não, ou pode mesmo cobrar pelo seu uso (mesmo que seja apenas a força que faz com que exista esse fator ou evita o surgimento de alternativas a ele). De fato, essas pessoas podem até gerar maior utilidade numa perspectiva neoliberal, porque permitem o uso do fator que controlam, e desutilidade numa perspectiva anarquista, por terem criado esse problema e por exigirem pagamento. Uma pessoa que não tenha uma posição privilegiada no sistema social não pode fazer o mesmo. Alguém que a sociedade tenha capacitado pode fazer bem ou mal. Alguém que seja socialmente deficiente, não tanto.
É importante entender que a deficiência não é uma condição puramente médica, mas também social. Nossas sociedades sistematicamente capacitam algumas pessoas que possuem certas condições e debilitam outras, com condições diferentes. Algumas deficiências são quase totalmente médicas. Por exemplo, minha asma ocasiona problemas médicos e problemas sociais secundários, como evitar alergias. Por outro lado, meu autismo ocasiona problemas sociais – como ter que evitar luzes estroboscópicas, contato visual e fazer ruídos agudos – sem muitas consequências médicas.
Se nossa sociedade normaliza exigências de contato visual, normaliza o uso de escadas em vez de rampas, e assim por diante, isso tem o efeito de capacitar algumas pessoas e debilitar outras. Permite que algumas pessoas sejam mais úteis e faz com que outras criem menos e, então, a diferença é usada como justificativa do favorecimento de alguns em detrimento de outros. Se nossa sociedade exige luzes brilhantes em todo lugar, isso ajuda pessoas com determinadas condições visuais e prejudica aqueles com condições diferentes. Se ela exige luzes piscantes como dispositivos de segurança, também permite que algumas pessoas evitem as luzes e incapacita outras com o uso delas.
Por todos esses motivos, eu não consigo confiar em qualquer sistema econômico que tenha como princípio “a cada um de acordo com seu trabalho”, porque nem todos têm a mesma oportunidade de executar trabalhos úteis. Ao mesmo tempo, eu não confio em sistemas que tenham como lema “de cada um de acordo com sua capacidade a cada um de acordo com suas necessidades”, porque não é possível para mim confiar em outro indivíduo para entender minhas capacidades e incapacidades ou para compreender minhas necessidades. Eu sou, em última análise, um especialista em minha própria experiência, mesmo se os outros sejam mais especializados em meus problemas médicos. Se uma comunidade anarco-comunista permitisse a utilização o que desejasse em serviços comunais, não há garantias de que os serviços estariam disponíveis ou de que minhas necessidades seriam atendidas. Na verdade, poderiam haver objeções políticas ao tratamento de meus problemas endocrinológicos, além de problemas práticos, como encontrar protetores auriculares, um computador silencioso e outras solicitações especiais. Seria necessário obter essas facilidades através de trocas mútuas.
Ao que parece, nem o comunismo por si só, nem as trocas por si só, são capazes de incluir a todos com deficiências. Devo perguntar aos anarquistas, esquerdistas e libertários como propõem solucionar esse problema.
Acredito que a sociedade, como um todo, tem a obrigação de incluir a todos e que certas instituições comunitárias terão a obrigação de garantir essa inclusividade. Suponho que uma renda mínima seja um primeiro passo, tanto como meio de inclusão quanto como compensação por exclusões. Da mesma forma que o geoísmo propõe compensar aqueles que são excluídos da terra, isto compensaria aqueles excluídos das instituições sociais e contrabalancearia a exclusão. Isso, porém, traria seus próprios problemas. Quem administraria o sistema? Por que tais administradores seriam mais responsáveis por aqueles debilitados pela sociedade que todas as outras instituições? Ou por que seriam menos corruptíveis que aqueles capacitados pela sociedade? Eu não acho que essa seja a melhor solução.
Créditos: Acho que fiquei sabendo do modelo social para a deficiência descrito extensivamente acima numa oficina de AndreA Newmann-Mascis (minhas notas estão misturadas e eu confundi esta oficina com outra a qual compareci). Sugiro que as pessoas interessadas sensibilidades sensoriais procurem o trabalho de Sharon Heller e Olga Bogdashina.
Traduzido por Erick Vasconcelos. Para ler o artigo original clique aqui.
Por Marja Erwin mantém o blog marjaerwin.livejournal.com.
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