Por Horacio Langlois
Sobre
o papel preponderante na Revolução Industrial da construção de
novas vias e estradas, grandes pontes, inovações técnicas, novos
meios de locomoção, etc., a compreensão tanto de historiadores
quanto de economistas é quase unânime: é praticamente inconcebível
a sociedade capitalista moderna sem a “revolução” dos meios de
transporte. O economista e historiador G. D. H. Cole
escreveu que “o advento das ferrovias não apenas deu à indústria
metalúrgica uma posição fundamental no sistema industrial, mas que
revolucionou também a natureza dos processos de investimento e
pavimentou o caminho para a expansão da propriedade via participação
acionária à todas as empresas de grande porte”[1]. Cidades
representativas do apogeu industrial como Birmingham ou Sheffield na
Inglaterra “tiveram seus rápidos desenvolvimentos econômicos
principalmente pelas ferrovias”; as grandes indústrias de
fabricação de máquinas... em princípio, se apoiaram muito mais na
demanda por locomotivas e equipamento ferroviários em geral do que
no crescente uso de engrenagens para ser usada na indústria de
transformação”[2].
Ao
analisar o papel do estado no surgimento do capitalismo, Kevin Carson,
em seu livro Studies
in Mutualist Political Economy
(Estudos na Economia Política Mutualista, tradução livre),
observou que um dos monopólios que Benjamin Tucker
tinha deixado passar era o monopólio dos transportes. Este monopólio
tem uma importância central no desenvolvimento do capitalismo: sem o
subsídio do estado sobre os custos internos de algumas empresas, o
mais provável é que as grandes corporações do final do século XIX e início do XX não tivessem chegado a se formar.
A
ferrovia foi a invenção fundamental por meio do qual se
transformaram radicalmente as sociedades europeias. No início elas
estavam limitadas pelo transporte de cargas em curtos trechos de
estradas, muitas vezes estabelecidas pela mesma empresa –
principalmente na mineração. As estradas privadas que traçavam os
primeiros inovadores estavam ilhadas umas das outras e não tinham a
intenção de se fazer chegar em cidades, províncias e até mesmo
nações. A ampla ferrovia moderna, que atravessaria distâncias
inimagináveis para a época, que ligaria mercados entre todos os
rincões da nação, era inacessível para estes capitais limitados.
A partir de 1840 o estado então surgiu como o principal promotor,
socializando os enormes custo destes monstruosos investimentos afim
de baratear os gastos de transporte das grandes lojas de departamento que
começavam a surgir e para deslocar os pequenos comerciantes locais,
baratear o traslado dos trabalhadores para as grandes cidades e
centros industriais, esvaziando os pequenos bairros e localidades
rurais, etc.
A
revolução dos transportes seguiria dois cursos principais: um em
que o estado era responsável de conceder terras e assegurar os
mercados, limitado a controlar e subsidiar, que foi predominantemente
na Inglaterra e França; e outro em que teve participação direta e
praticamente iniciou uma rede estatal de serviços de transportes
públicos com apoio estratégico de capitais privados, cujo exemplo
paradigmático foi Bélgica e Alemanha.
Na
Inglaterra o governo era responsável por facilitar concessões de
terras públicas – em alguns casos expropriados de camponeses –
para grandes capitais privados, que ofereceriam um serviço barato e
com uma tarifa subsidiada monitorada pelas autoridades públicas.
Desde 1842 os trilhos das estradas de ferro só podiam ser
autorizados pelos inspetores do Ministério do Comércio. Na França,
a rede privada de ferrovia, limitada em 1848, estava limitada pela
especificação às condições estatais precisas. A partir do
Segundo Império, o estado favoreceu diretamente as fusões de
capitais e aproximou relações diretas com umas poucas grandes
empresas que oferecessem garantias e solvência financeira.
Em
1842, na Bélgica, o estado assegurava a construção e operação de
todas as linhas para as companhias privadas, cedendo o usufruto das
estradas secundárias para capitais e engenheiros ingleses. Na
Alemanha, August von der Heydt, desde o Ministério do Comércio da
Prússia se dedicou entre os anos de 1848 e 1862 para estender
paulatinamente o controle do estado sobre as ferrovias. De fato, a
construção de estradas de ferro foi totalmente centralizada pelo
governo prussiano. Por volta de 1857, praticamente a metade das
companhias foram nacionalizadas ou sob o controle estatal. Sob o
controle de Otto von Bismarck, o interesse sobre uma rede de
ferrovias nacionalizada se fez explícita na medida que favorecia o
traslado de tropas militares para a invasão imperial e para acabar
com as greves de trabalhadores. Antes de 1850, no Império austríaco,
o estado tentou empreender a construção de toda a rede de estrada
de ferro, porém as dificuldades econômicas o obrigou a interromper
as obras. Em 1854 o governo associou seu monopólio com o Crédit
Mobilier de Paris, formando a Sociedade Austríaca de Ferrovia do
Estado, que assumiu o controle das ferrovias assim como das fábricas
de locomotivas. Em torno de 1863 houve uma febre de construção de
ferrovias nas mãos de empresas privadas que se beneficiavam de uma
garantia concedida pelo estado. Em 1873 veio a crise, e a maioria
destas empresas tiveram que ser nacionalizadas. Por outro lado, tanto
na Itália como na Espanha, a existência de ferrovias era muito
pobre em 1850, e as poucas construções que foram feitas a partir
desse ano foram devido a concessão de terras e estradas para
capitais e engenheiros franceses[3].
A
navegação marítima seguiu um curso similar. As inovações
técnicas aceleraram o projeto de grandes barcos para o transporte de
mercadorias e pessoas. Não obstante, eram tão custosas que as
empresas tradicionais que se dedicaram a construção de barcos não
podiam pagá-las. Segundo Palmade,
“Estas
transformações técnicas não demoraram em modificar os aspectos
econômicos dos transportes marítimos. O custo de construção do
navio aumentou em tais proporções que já não estava ao alcance do
armador de outros tempos, ao qual foi substituído por poderosas
empresas com capitais significantes fornecidos por grupos bancários.
Muitas vezes gozavam de subsídios do estado e monopólio virtual
para a exploração de suas linhas [4].”
As obras necessárias
para a criação de grandes portos também ocorreram próximas de
associações de capital privado e estado, que se dedicaram à
construção de docas, canais, etc. Mas os principais portos que
recebiam esta atenção eram os que podiam se conectar com as novas
vias férreas. Não surpreendente, a família Pereire, que se
dedicava assiduamente à administração de ferrovias, teve
participação também nestas companhias de navegação subsidiadas
[5].
A verdade é que não
existia, antes de todos os empreendimentos, uma demanda real para
este tipo de transporte. O fato de que os capitais privados não
tinham feito para eles mesmos é eloquente o bastante: os
consumidores teriam que pagar enormes quantias para mantê-los.
Somente através da socialização dos custos internos destas
empresas graças ao estado e ao controle monopólico do mercado que
se poderia assegurar algum tipo de benefício a cobrir o risco.
A necessidade destes
serviços era sem sentido, já que a vida antes dos transportes era
bem diferente. Existia, até início do século XIX na Europa
continental, uma vida marcada pelo local, bairrista. As jornadas se
faziam em sua maior parte à pé, muitas vezes o lugar de onde se
vivia era o mesmo de onde se trabalhava. Predominava a produção
artesanal, familiar e doméstica. Grande parte das atividades extra-laborais, como as igrejas ou as lojas para comprar suprimentos, se
encontrava dentro do mesmo bairro. Claro, isto não era muito
conveniente para as indústrias capitalistas emergentes que
necessitavam do afluxo de grandes contingentes de trabalhadores para
os centros urbanos. O sociólogo Renato Ortíz, analisando as origens
do desenvolvimento da ideia de “mobilidade” como base fundamental
do advento da modernidade, cita o informe de uma comissão municipal
de Paris de 1828 sobre as supostas necessidades da “circulação”:
“Há em cidades
grandes como Paris uma imensa necessidade de transportes a preços
baixos. Existe, entre todos os bairros, uma solidariedade estreita de
relações de toda natureza. O regime de concorrência existente nas
ruas não satisfaz este interesse porque serve alguns bairros e não
a outros. Portanto, o melhor é constituir uma única companhia que,
com menos gastos, produza um transporte barato e que, por unidade de
direção, estabeleça a solidariedade de um serviço que se deve
estender em todas as direções. [6]”
Neste pequeno
parágrafo as claras intenções da classe dominante estão contidos.
Os centros urbanos precisam de maior afluxo de homens para trabalhar.
Necessita, para eles, de um transporte de massa e a preços baixos
que, de outra forma, o custo de atrair trabalhadores à cidade seria
maior. Para tanto as autoridades públicas devem se encarregar por
estabelecer um monopólio que socialize estes custos e permita o
barateamento da mão-de-obra. E tudo isso disfarçado de uma suposta
“necessidade” de estreitar laços de “solidariedade” entre os
bairros parisiense.
Incluindo medidas de
repressão e controle sobre os movimentos populares posteriores à
implantação organizada do capitalismo, que foram fontes de negócio
para uns poucos capitais concentrados dedicados aos transportes.
Segundo conta Ortíz, ao analisar a obra do Barão Haussmann,
urbanista francês encarregado de redesenhar a cidade de Paris,
relata que:
“Paris, desde a
Revolução, a queda de Carlos X em 1830, os combatentes de 1848,
havia sido cenário de violentos acontecimentos políticos. Havia uma
razão geográfica para isso, as ruas estreitas permitiam a
construção de barricadas, impedindo a ação da força policial.
Haussmann tem clara consciência destas questões; sua reforma possui
uma inequívoca dimensão política. 'A execução das diversas
operações não exigiu mais do que cinco anos. Era o estripamento da
Velha Paris, dos bairros dos motins, das barricadas. Com uma longa
avenida central penetrando de um lado ao outro este labirinto
impraticável, ladeado por comunicações transversais'. (Haussmann,
1979:54). […] Poderíamos somar outro elemento a este quadro. Os
trabalhos de remodelação urbana são caros e envolvem múltiplos
interesses. Isto requer uma associação entre a ação do estado e
do capital privado, muitas vezes favorecendo a especulação. A
construção de novos edifícios, às vezes bairros inteiros, atende,
portanto, uma expectativa dos grandes grupos financeiros[7].”
Novamente vemos as
intenções da classe dominante disfarçadas de “necessidade
pública” progressista. Até meados do século XIX, Paris era uma
cidade de bairros abarrotados de construções irregulares, cruzada
por ruas e estradas estreitas e serpenteantes, que concentrava e
amontoava enormes contingentes de pessoas. Isto facilitava a
resistência e as revoltas trabalhistas e, por isso, tornou-se
necessário a construção de grandes bulevares e avenidas que
permitisse a circulação e a passagem de novos transportes urbanos,
enquanto dava ataque repentino e favorecia a repressão.
Paralelamente, se criava uma fonte enorme de negócios mediante as
expropriações e destruições de bairros antigos. O historiador Guy
Palmade nota que “homens de negócio, verdadeiros 'promotores' se
encarregavam da construção de novos bairros acumulando com eles
grandes fortunas... Grupos financeiros especulavam o valor da terra e
das perspectivas de expansão das cidades”[8].
Talvez
por isso que, nas palavras de Carson, “não é assim que funcionam
as coisas segundo o que os neoliberais gostam de denominar
'capitalismo de livre mercado'”. Porém o papel do estado na
Revolução Industrial foi a norma e não a exceção. “Os custos
das redes de transporte e de comunicações das receitas gerais, em
vez de pôr impostos e taxas de utilização, permitiam as grandes
empresas 'externalizarem seus custos' sobre o público e ocultar seus
verdadeiros custos de operação”[9].
O
resultado da criação de toda a rede moderna de transporte e
comunicações teve três efeitos principais na economia
capitalista nascente: (a) a criação de gigantescas empresas e
fusões de capitais por parte do estado, ao qual dispõe de um
monopólio legal e uma estrutura de custos subsidiada por todos os
cidadãos, (b) a diminuição artificial nos custos de transporte de
mercadorias para as grandes lojas de departamento em detrimento das
pequenas lojas locais, e (c) o barateamento da mão-de-obra devido ao
transporte de massa dos trabalhadores vindos das economias locais até
os centros industriais e as cidades.
Os
economistas ortodoxos se contentam em assumir que as ferrovias, as
comunicações, etc. são atividades em que o surgimento de
monopólios é um fato “natural”. O que nós podemos dizer é que
aparentemente a maioria destes profissionais estão muito mal
formados em história econômica.
Notas:
[1]
G. D. H. Cole, Introducción
a la historia económica, 1750-1950.
Buenos Aires, Fondo de Cultura Económica, 1973 (p. 61).
[2]
G. D. H. Cole, Ibid.
(p.
63).
[3]
Guy Palmade, La
época de la burguesía. Madrid,
Siglo XXI, 1972 (pp. 77-89).
[4]
Guy Palmade, Ibid.
(p.
92).
[5]
Guy Palmade, Ibid.
(p.
94).
[6]
Renato Ortíz, Modernidad
y espacio. Benjamin en París.
Buenos Aires, Grupo Editorial Norma, 2000 (pp. 25-26).
[7]
Renato Ortíz, Ibid.
(pp.
29-30).
[8]
Guy Palmade, Op.
Cit. (p.
68).
[9]
Kevin Carson, Studies
in Political Economy Mutualist, 2004.
Disponível em
<http://www.mutualist.org/id47.html> (acessado em 02/05/2014).
Texto original em inglês: “But
that’s not the way things work under what the neoliberals like to
call 'free market capitalism'. Spending on transportation and
communications networks from general revenues, rather than from taxes
and user fees, allows big business to 'externalize its costs' on the
public, and conceal its true operating expenses”.
Traduzido
do espanhol por Rodrigo Viana.
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