Este texto é parte integrante do projeto An Anarchist FAQ, porém de uma versão não atual.
Murray Rothbard argumenta que "a 'direita' ultraliberal não se opõe à desigualdade". [For a New Liberty, pág. 47]. Em contraste, a "esquerda" libertária se opõe à desigualdade pelos seus efeitos danosos à liberdade individual.
Parte
da razão pela qual o "anarco"-capitalismo dedica pouco ou
nenhum valor à "igualdade" deriva de como definem esse
termo. Murray Rothbard define igualdade como:
"A e B são 'iguais' se são idênticos em cada um de seus respectivos atributos... portanto, há um e apenas um modo de dois indivíduos serem realmente 'iguais' em sentido pleno: eles devem ser idênticos em todos seus atributos".
Daí
obviamente conclui que os "homens não são uniformes,. . .
as espécies, o gênero humano, são caracterizados exclusivamente
por um alto grau de variedade, diversidade, diferenciação: em suma,
desigualdade". [Egalitarianism as a Revolt against Nature
and Other Essays, p. 4, p.5]
Em
outras palavras, cada indivíduo é único. Algo que nenhum
igualitário nunca negou. Com base nesta surpreendente perspicácia,
ele conclui que a igualdade é impossível (exceto a "igualdade
de direitos") e que a tentativa para alcançar "igualdade"
é uma "revolta contra natureza" -- como se qualquer
anarquista alguma vez tivesse defendido a noção de igualdade como
sendo idêntico!
E
assim, por sermos todos únicos, o produto de nossas ações não
será idêntico, assim as desigualdades sociais surgem devido de
diferenças sociais e não devido ao sistema econômico a que estamos
submetidos. Desigualdade de dons implica em desigualdade de
resultados e, portanto, desigualdades sociais. Como as diferenças
individuais são um fato da natureza, as tentativas de criar uma
sociedade baseada na "igualdade" (isto é tornando todo
mundo idêntico em termos de posses e assim sucessivamente) é
impossível e "antinatural".
Antes
de continuar, é importante destacar como Rothbard destrói a
linguagem na medida em que constrói seus pontos de vista, e que ele
não é o primeiro a abusar da linguagem deste modo particular. Em
1984 de George Orwell, a expressão "todos os homens
são criados iguais" poderia ser traduzido em Novilíngua, mas
faria tanto sentido quanto dizer "todos os homens têm
cabelos vermelhos", uma falsidade óbvia (veja "Os
Princípios de Novilíngua" Apêndice). É bom saber que o "Sr.
Libertariano" está roubando idéias do Big Brother, e pela
mesma razão: torna o pensamento crítico impossível pela restrição
do significado das palavras.
"Igualdade",
no contexto da discussão política, não significa "idêntico",
normalmente significa igualdade de direitos, respeito, valor, poder e
assim sucessivamente. Não insinua tratar identicamente todo mundo
(por exemplo, esperar que um homem com oitenta anos faça um trabalho
idêntico ao de outro com dezoito anos viola tanto o respeito como a
unicidade dos indivíduos). Para os anarquistas, como escreve
Alexander Berkman, "igualdade
não significa uma igual quantia mas oportunidade
igual. . . Não
cometa o erro de identificar igualdade na liberdade com igualdade
forçada num campo de prisioneiros. A verdadeira igualdade anarquista
implica em liberdade, não quantidade. Isso não significa que todo
mundo tem que comer, beber, ou usar as mesmas coisas, fazer o mesmo
trabalho, ou viver da mesma maneira. Longe disto: na realidade, bem
pelo contrário. As necessidades e os gostos individuais diferem,
como diferem os apetites. É a oportunidade igual
para
satisfazê-los que constitui a verdadeira igualdade. Longe de
nivelamento, tal igualdade abre a porta para a maior variedade
possível de atividades e desenvolvimento. Diante da diversidade do
caráter humano, apenas a repressão dessa livre diversidade resulta
em nivelamento, uniformidade e monotonia. Aproveitar oportunidades e
expressar individualidade significa desenvolver dessemelhanças
naturais e variadas. . . . Viver em liberdade, em anarquia fará mais
do que apenas liberar o homem de sua presente escravidão política e
econômica. Será apenas o primeiro passo, a preliminar para uma
existência verdadeiramente humana".
[The ABC of
Anarchism, p.
25]
Assim,
os anarquistas rejeitam a definição de Novilíngua-rothbardiana de
igualdade como destituída de sentido dentro da discussão política.
Duas pessoas não são idênticas e impor uma "idêntica"
igualdade entre eles significaria tratá-los como desiguais,
isto é, sem igual valor ou sem lhes dar respeito igual enquanto
seres humanos e indivíduos.
Assim
o que fazer com a reivindicação de Rothbard? Ele cita Rousseau em
seus argumentos "é. . . inútil indagar se há alguma
conexão essencial entre as duas desigualdades [social e natural];
seriam apenas questões, em outras palavras, se aqueles que comandam
são necessariamente melhores que aqueles que obedecem, e se a força
do corpo ou da mente, a sabedoria, ou a virtude são sempre
encontradas em determinados indivíduos, proporcionalmente ao poder
ou riquezas que eles detém: essa questão conviria talvez ser
discutida por escravos diante de seus senhores, mas seria altamente
imprópria a homens razoáveis e livres em busca da verdade".
[The Social Contract and Discourses, p. 49]. Aqui há
outros pontos em discussão.
A
singularidade dos indivíduos sempre existiu mas por um vasto período
da história humana vivemos em sociedades muito igualitárias.
Realmente, se a desigualdade social fluísse mesmo de desigualdades
naturais todas
as sociedades seriam marcadas por isto. Este não é o caso.
Realmente, considerando um exemplo relativamente recente, muitos que
visitaram os Estados Unidos em seu início, notaram sua natureza
igualitária, algo que logo mudou com a proliferação do trabalho
assalariado e o capitalismo industrial (altamente dependente da ação
estatal, diga-se de passagem -- veja seção F.8).
Isto implica em que a sociedade onde vivemos (baseada na propriedade,
nas relações sociais que ela gera e daí por diante) tem um impacto
bem mais decisivo para as desigualdade do que para diferenças
individuais. Assim certas bases da direita tenderão a aumentar
desigualdades "naturais" (assumindo, por absurdo, que seja
a fonte da desigualdade inicial, em vez de, digamos, a violência e a
força). Como Noam Chomsky argumenta:
"Presumivelmente é o caso de, em nosso 'mundo real', algumas combinações de atributos conduzir ao sucesso na medida em que respondem 'as demandas do sistema econômico' . . Alguém poderia supor que uma mistura de avareza, egoísmo, falta de preocupação para com os outros, agressividade, e características semelhantes exercem um papel importante [no capitalismo]. . . Seja lá qual for o conjunto correto destes atributos, surge a questão: o que fazer diante do fato, se isso for um fato, de que alguns herdeiros de tal combinação de atributos tendem ao sucesso material? Tudo o que. . . diga respeito às nossas sociedades particulares e arranjos econômicos. . . o poder igualitário aponta na direção de que, em todos os casos, a ordem social mude de forma que o conjunto de atributos que tendem a trazer sucesso nada tenham a ver com essas coisas [avareza, egoísmo, indiferença, agressividade]. . . " [The Chomsky Reader, p. 190]
Assim,
talvez, se mudarmos a sociedade então as desigualdades que vemos
hoje também desaparecerão. É mais que provável que a diferença
natural deu lugar a desigualdades sociais, especialmente
desigualdades de propriedade (que tende a aumentar, em vez de
diminuir a desigualdade). E como discutimos na seção F.8
estas desigualdades de propriedade foram inicialmente resultado da
força, não
diferenças em habilidade. Assim, reivindicar que a desigualdade
social flui de diferenças naturais é falso pois a maioria das
desigualdades sociais surgem pela violência e pela força. Estas
desigualdades iniciais foram aumentadas pela base do direito da
propriedade capitalista de forma que a desigualdade dentro do
capitalismo precisa de coisas como, por exemplo, a existência do
trabalho assalariado, em vez de diferenças "naturais"
entre indivíduos.
Se
nós olharmos para o capitalismo, vemos que nos locais de trabalho e
pelas indústrias em geral muitos, senão todos, indivíduos únicos
recebem idênticos salários por idêntico trabalho (embora este
muitas vezes não seja o caso das mulheres e dos negros, que recebem
um salário menor que os homens, e trabalhadores brancos).
Semelhantemente, os capitalistas introduziram desigualdades salariais
e hierarquias deliberadamente por nenhuma outra razão senão a de
dividir (e assim governar) a mão-de-obra (veja seção D.10).
Assim, se assumimos que igualitarismo é
uma revolta contra a natureza, então muito da vida econômica
capitalista está em tal revolta (e quando não está, as "naturais"
desigualdades são impostas artificialmente pelos que estão no
poder).
Assim,
diferenças "naturais" não resultam necessariamente em
desigualdade como tais. Diante de um sistema social diferente, as
diferenças "naturais" seriam encorajadas e celebradas bem
mais do que o são sob o capitalismo (conforme discutimos na seção
B.1,
a hierarquia assegura o esmagamento da individualidade em vez de seu
encorajamento) sem qualquer mudança na igualdade social. O clamor de
que diferenças "naturais" geram desigualdades sociais é
um posicionamento extremamente distorcido -- assume o direito social
com base na propriedade como definitivo e ignora a fonte inicial da
desigualdade: a propriedade e o poder. Realmente, a desigualdade de
resultado ou recompensa será influenciada mais provavelmente através
das condições sociais em vez das diferenças individuais (como
seria o caso em uma sociedade baseada no trabalho assalariado ou
outras formas de exploração).
Outra
razão para o equívoco "anarco"-capitalista sobre
igualdade é que eles acham que a "liberdade
transtorna os padrões"
(veja seção F.2.5,
por exemplo). Ou seja, a igualdade só poderia ser mantida
restringindo a liberdade individual por trocas ou tributações de
renda. Porém, o que este argumento falha em reconhecer é que a
desigualdade também restringe a liberdade individual (veja próxima
seção, por exemplo) e que o vigamento dos direitos de
propriedade capitalista não é o único possível. Afinal de contas,
dinheiro é poder e desigualdade pelo poder facilmente resultar em
restrições de liberdade e de transforma a maior parte das pessoas
em compradores em vez de produtores livres. Em outras palavras, uma
vez que certo nível de desigualdade é alcançado, a propriedade em
vez de promover, conflita com os fins que eventualmente legitimariam
a propriedade privada. Além disso, Nozick (em seu argumento de que
"a liberdade transtorna os padrões") "produziu.
. . um argumento para a propriedade privada irrestrita que usa a
propriedade privada irrestrita, e assim ele contorna a pergunta que
tenta responder". [Andrew
Kerhohan, "Capitalismo
e auto-propriedade",
de Capitalism,
pág. 71]. O trabalhador empregado por um capitalista, por exemplo,
não pode livremente trocar as máquinas ou matérias-primas que
utiliza, mas Nozick não classifica tal "restrição" aos
direitos de propriedade como infração à liberdade (naturalmente,
ele nem mesmo considera que a escravidão assalariada por si só
restringe a liberdade).
Assim
com respeito à reivindicação de que igualdade só poderia ser
mantida mediante contínua interferência nas vidas de pessoas, os
anarquistas diriam que as desigualdades também as produziram através
dos direitos de propriedade capitalista, que envolvem uma extensa e
contínua interferência nas vidas das pessoas. Afinal de contas,
como Bob Black nota "seu
capataz ou supervisor lhe dá mais ordens em uma semana do que a
polícia lhe daria por toda uma década"
sem falar de outros efeitos da desigualdade como tensão, doença e
assim por diante [Libertarian
as Conservative].
Assim, dizer que igualdade significa ou pode significar infringir a
liberdade, ignora o fato que que a desigualdade também infringe a
liberdade. A reorganização da sociedade poderia efetivamente
minimizar desigualdades eliminando a fonte principal de tais
desigualdades (o trabalho assalariado) através da autogestão (veja
seção I.5.12
para uma discussão sobre "ação capitalista" dentro de
uma sociedade anarquista). Não temos nenhum desejo de restringir a
livre troca (afinal de contas, a maioria dos anarquistas deseja ver o
"valor econômico" cedo ou tarde tornar-se uma realidade)
mas argumentamos que a livre troca não precisa envolver os direitos
de propriedade irrestrita assumidos por Nozick. Conforme discutimos
nas seções F.2
e F.3.1,
a desigualdade pode facilmente conduzir a situações onde a
propriedade privada é usada para justificar sua própria negação,
de forma que o direito irrestrito de propriedade chega ao ponto de
arruinar significativamente a auto-determinação (que muitos
anarquistas usualmente chamam de "liberdade" mais do que de
propriedade privada) que muitas pessoas intuitivamente identificam
com o termo "propriedade privada".
Assim,
para os anarquistas, a oposição "anarco"-capitalista à
igualdade desvia-se do essencial e torna-se extremamente pobre. Os
anarquistas não desejam tornar a humanidade "idêntica" (o
que seria impossível e uma total negação da liberdade e da
igualdade) mas construir relações sociais entre indivíduos iguais
em poder. Em outras palavras, desejam uma situação onde
pessoas interagem juntas sem poder institucionalizado ou hierarquia e
são influenciadas "naturalmente" umas pelas outras de
forma que diferenças (individuais) entre (social) iguais
(sociais) aplicam-se em determinados contextos. Citando Michael
Bakunin, "a maior inteligência não seria igual a uma
compreensão do todo. Isso resulta . . . na necessidade da divisão e
da associação do trabalho. Eu recebo e eu dou -- tal é a vida
humana. Cada um dirige e é por seu turno dirigido. Então não há
nenhuma autoridade fixa e constante, mas uma troca ininterrupta de
mútua, temporária, e, acima de tudo, voluntária autoridade e
subordinação". [God and the State, p. 33].
Tal
ambiente só pode existir dentro de associações autogeridas, pois o
capitalismo (isto é, trabalho assalariado) cria relações muito
específicas e instituições de autoridade. É por essa razão que
anarquistas são socialistas (isto é, contra o trabalho assalariado,
contra a existência de um proletariado ou de uma classe
trabalhadora). Em outras palavras, os anarquistas apóiam a igualdade
precisamente porque nós reconhecemos que todo o mundo é
único. Se falamos com seriedade sobre coisas como "igualdade de
direitos" ou "igual liberdade" então as condições
devem ser tais que as pessoas possam desfrutar tais direitos e
liberdades. Se assumimos que todos têm o direito de desenvolver
plenamente suas capacidades, por exemplo, então a desigualdade de
recursos e portanto de poder dentro da sociedade destrói aquele
direito simplesmente porque as pessoas não têm os meios para
exercitar livremente suas capacidades (elas estão sujeitas à
autoridade do chefe, por exemplo, durante as horas de trabalho).
Assim,
em contraste direto com o anarquismo, a direita ultraliberal não se
preocupa com nenhuma outra forma de igualdade exceto a "igualdade
de direitos". Isto os torna cegos às realidades de vida; em
particular, ao impacto do poder econômico e social nos indivíduos
dentro da sociedade e das relações sociais de dominação que eles
criam. Os indivíduos podem ser "iguais" diante da lei e em
direitos, mas eles podem não ser livres devido à influência da
desigualdade social, das relações criadas e de como isso afeta a
lei e a habilidade do oprimido em usá-la. Por causa disto, todos os
anarquistas insistem que a igualdade é essencial para a liberdade,
inclusive os de tradição Individualista que os "anarco"-capitalista
tentam cooptar -- "Spooner e Godwin insistem que a
desigualdade corrompe a liberdade. O anarquismo deles é dirigido
tanto contra a desigualdade como contra a tirania" e "ao
passo que os simpatizantes do anarquismo individualista de Spooner,
[Rothbard e David Friedman] falham em perceber ou convenientemente
negligenciam suas implicações igualitárias." [Stephen L.
Newman, Liberalism at Wit's End, pág. 74, pág. 76]
A
importância da igualdade é mais completamente discutida na próxima
seção. Aqui apenas enfatizamos que sem igualdade social, a
liberdade individual é restringida a tal ponto que se torna um
escárnio (essencialmente, a liberdade da maioria limitou-se mais a
escolher
o patrão
que o governará do que ser livre dentro e fora de trabalho).
Naturalmente,
definir "igualdade" de uma maneira tão restritiva, revela
a ideologia de Rothbard como pura tolice. Como L.A. Rollins destaca,
"O libertarianismo, a defesa da 'sociedade livre' na qual as
pessoas desfrutam de 'igual liberdade' e 'direitos iguais', é de
fato uma forma específica de igualitarismo. Como tal, o próprio
libertarianismo é uma revolta contra natureza. Se pessoas, pela
natureza biológica delas, são desiguais em todos os atributos
necessários para alcançar, e preservar 'liberdades' e 'direitos'. .
então não há nenhum modo das pessoas poderem desfrutar 'igual
liberdade' ou 'direitos iguais'. Se uma sociedade livre é concebida
como uma sociedade de 'igual liberdade', então ela não é
'sociedade livre' coisa nenhuma". [The Myth of Natural
Law, p. 36]
Sob
o capitalismo, liberdade é uma mercadoria como tudo o mais. Quanto
mais dinheiro você tem, maior é sua liberdade. Liberdade "igual",
no sentido de Novilíngua-rothbardiana, não
pode
existir! No que tange a "igualdade diante da lei", é claro
que tal esperança sempre é atirada contra os muros da riqueza e do
poder do mercado (veja mais sobre isso na próxima
seção). No que toca a direitos, naturalmente, tanto o rico como
o pobre tem o "igual direito" de dormir sob uma ponte
(presumindo que o dono da ponte concorde, claro!); mas o dono da
ponte e os sem-teto tem direitos diferentes,
e assim não pode ser dito que eles têm "direitos iguais"
no sentido de Novilíngua-rothbardiana. É desnecessário dizer que pobre
e rico não usam "igualmente" o "direito" de
dormir sob uma ponte.
Bob
Black observa em The Libertarian as Conservative que "o
tempo de sua vida é uma mercadoria que você pode vender mas nunca
comprá-lo de volta. Murray Rothbard encara o igualitarismo como uma
revolta contra natureza, mas o dia dele dura 24 horas, como o de todo
mundo".
Pela
distorção do significado das palavras no debate político, as
vastas diferenças de poder na sociedade capitalista podem ser
"responsabilizadas" não por um sistema injusto e
autoritário mas pela "biologia" (afinal de contas, somos
todos indivíduos únicos). Diferentemente dos genes (embora
corporações de biotecnologia estejam trabalhando nisto, também!),
a sociedade humana pode ser mudada, pelos indivíduos que
fazem parte dela, refletindo as características básicas que todos
nós compartilhamos em comum -- nossa humanidade, nossa habilidade
para pensar e sentir, e nossa necessidade de liberdade.
F.3.1 Por que desconfiar de pessoas que desprezam a igualdade?
Simplesmente
porque aqueles que desprezam à igualdade tendem a acabar com a
liberdade da maioria, negando-a de muitos modos importantes. A
maioria do "anarco"-capitalistas e liberais negam (ou melhor ignoram) o poder de mercado. Rothbard, por exemplo,
proclama que o poder econômico não existe; e que aquilo que as
pessoas chamam de "poder econômico" é
"simplesmente o livre direito de recusar fazer uma troca".
[The Ethics of Liberty, pág. 222]. Assim, o conceito fica sem
sentido.
Porém,
o fato é que existem substanciais centros de poder na sociedade
(fontes de poder hierárquico e relações sociais autoritárias)
além do estado. A falácia central do "anarco"-capitalismo
é a (não declarada) suposição de que os vários atores dentro de
uma economia têm poder relativamente igual. Esta suposição foi
notada por muitos leitores dos livros deles. Por exemplo, Peter
Marshall destaca que "'anarco-capitalistas' como Murray
Rothbard assumem que os indivíduos teriam igual poder de barganha em
uma sociedade baseada no mercado [capitalista". [Demanding
the Impossible, pág. 46]. George Walford também deixa isso
claro quando comenta The Machinery of Freedom de David
Friedman:
"A propriedade privada concebida pelos anarco-capitalistas é bem diferente do que poderíamos imaginar. É como imaginar uma pessoa agradável, quando ela é de fato sórdida. No anarco-capitalismo não haveria qualquer Seguro Nacional, nenhuma Previdência Social, nenhum Serviço de Saúde Nacional e nem mesmo qualquer coisa parecida com Programas Sociais; não haveria nenhum bombeiro a serviço do público. Seria uma sociedade rigorosamente competitiva: trabalhe, implore ou morra. Na medida em que estudam, as pessoas aprendem que cada deve comprar, pessoalmente, todos os bens e serviços necessários, não apenas comida, roupa e abrigo, mas também educação, serviços médicos, serviços sanitários, justiça, polícia, todas as formas de segurança e seguro, e até mesmo permissão para usar as ruas (pois elas também seriam propriedade privada). Na medida em que lemos essas coisas uma característica curiosa emerge: todo mundo sempre tem dinheiro suficiente para comprar todas estas coisas.
"Não há nenhum eventual cuidado público, hospitais ou hospícios, mas não existe qualquer pessoa morrendo pelas ruas. Não há nenhum sistema educacional público mas não existe nenhuma criança sem educação, nenhum serviço de segurança público mas não há ninguém incapaz comprar os serviços de uma empresa de segurança eficiente, nenhuma lei pública mas ninguém incapaz comprar o uso de um sistema legal privado. Nem existe ninguém capaz de comprar muito mais do que qualquer pessoa; nenhuma pessoa ou grupo possui poder econômico sobre os demais.
"Nenhuma explicação é oferecida. Os anarco-capitalistas simplesmente consideram tais coisas como privilégios de sua sociedade, embora não possuam nenhum instrumento para conter a competição (para isto precisariam exercer autoridade sobre os competidores, apesar de tratar-se de uma sociedade anarco-capitalista), a competição não chegaria ao ponto de ninguém sofrer com ela. Embora proclamem seu sistema como competitivo, onde reina sem controle os interesses privados, eles o apresentam também como um sistema co-operativo, em que nenhuma pessoa ou grupo lucra as custas dos outros". [On the Capitalist Anarchists]
Esta
suposição de (relativa) igualdade vem à tona no conceito de
propriedade dos "domicílios" de Murray Rothbard (discutido
na seção F.4.1).
Tais imagens, os "domicílios", retratam um conjunto de
indivíduos e famílias que constróem, em um lugar ermo, uma casa
para eles, lutando contra os elementos da natureza e assim
sucessivamente. Não
invoca a idéia de corporações transnacionais que empregam dezenas
de milhares das pessoas ou uma populações sem terra, sem recursos e
vendendo o trabalho deles a outros. Realmente, Rothbard defende que
não existe poder econômico (pelo menos sob o capitalismo; como nós
vimos na seção F.2.1
quando ele traça algumas exceções -- altamente ilógicas).
Semelhantemente, o exemplo de David Friedman de uma firme "defesa"
pró pena de morte e anti pena de morte previamente pactuada (veja
seção F.6.3)
presume que as empresas têm igual poder de barganha e iguais
recursos -- se não, então o processo de barganha seria muito
unilateral e a companhia menor pensaria duas vezes antes de enfrentar
a maior na batalha (resultado provável se eles não conseguem chegar
em um consenso neste assunto) e chegar a algum compromisso.
Porém,
a negação do poder do mercado por parte da direita ultraliberal é
algo surpreendente. A necessidade, não a redundância, da igualdade
é requerida apenas se os problemas inerentes do contrato não se
tornarem muito óbvios. Se é assumido que alguns indivíduos
têm significativamente mais poder que outros, e se eles sempre
tiverem interesses egoísticos, então um contrato que crie parceiros
iguais é impossível -- o pacto estabelecerá uma associação de
senhores e servos. É desnecessário dizer que o forte apresentará o
contrato como sendo vantajoso para ambos: o forte não tem que
trabalhar (e ficar rico, isto é, mais forte) e o fraco recebe uma
renda e assim não passa fome.
Se
a liberdade é considerada enquanto função da propriedade então é
evidente que os indivíduos que carecem de propriedade (exceto seu
próprio corpo, claro) perdem controle efetivo sobre sua própria
pessoa e trabalho (que é, importante não esquecer, a base dos
direitos naturais iguais que eles defendem). Quando alguém pechincha
poder é porque é fraco (que é tipicamente o caso dentro do mercado
de trabalho) com o passar do tempo, as trocas tendem a aumentar as
desigualdades de riqueza e poder, em vez de contribuir para uma
equalização.
Em
outras palavras, o "contrato" não repõe poder se a
posição de barganha e riqueza dos pretensos contratantes é
desigual (pois, se os barganhadores tivessem poder igual dificilmente
concordariam em vender o controle do tempo livre entre si). Isto
significa que "poder" e "mercado" não são
condições antitéticas. Enquanto que, em um sentido abstrato, todas
as relações do mercado são voluntárias na prática, este não é
o caso dentro de um mercado capitalista. Por exemplo, uma companhia
grande tem uma vantagens em relação a pequena e sobre as
comunidades que definitivamente se amoldarão ao resultado de
qualquer contrato. Por exemplo, uma companhia grande ou uma pessoa
rica terão acesso a mais fundos e assim esticarão os litígios e
greves até que os recursos dos oponentes deles sejam exauridos. Ou,
se uma companhia local estiver poluindo o ambiente, a comunidade
local pode aguentar o dano causado com medo de que a indústria (da
qual depende) se mude para outra área. Se os membros da comunidade a
processasse, então a companhia estaria apenas exercitando
seus direitos de propriedade em ameaçar mover-se para outro local.
Em tais circunstâncias, ou a comunidade consente "livremente"
em suas condições ou enfrenta uma grave ruptura social e econômica.
Semelhantemente, "os agentes arrendatários que ameaçaram
despedir os trabalhadores agrícolas e inquilinos que recusaram votar
em seus tickets reacionários" na eleição espanhola de
1936 estavam apenas exercitando seus legítimos direitos de
propriedade quanto eles ameaçaram os trabalhadores e suas famílias
com incerteza econômica e angústia. [Murray Bookchin, The
Spanish Anarchists, pág. 260]
Se
levarmos em conta o mercado de trabalho, é claro que os
"compradores" e os "vendedores" da força de
trabalho raramente estarão em bases iguais (se eles estivessem,
então o capitalismo logo entraria em crise -- veja a seção
F.10.2).
Na realidade, a competição "no
mercado de trabalho inclina-se tipicamente em favor dos empregadores:
é um mercado de compradores. E em um mercado de compradores são os
vendedores que chegam a um acordo".
[Juliet B. Schor, The
Overworked American,
pág. 129]. Assim a habilidade de recusar essa troca oprime mais
pesadamente uma classe do que a outra, assegurando assim que a "livre
troca" funcione para assegurar a dominação (e assim a
exploração) de uma classe por outra.
A
desigualdade no mercado assegura que a maior parte das decisões que
saem do mercado sejam tomadas de acordo com as necessidades dos
poderosos, não com as necessidades de todos. Foi por isso que o
anarquista individualista J.K. Ingalls se opôs à proposta de
nacionalização da terra de Henry George. Ingalls estava bem atento
no fato de que os ricos podem sobrepujar os pobres nos arrendamentos
de terra, assim a desapropriação do proletariado continuaria.
O
mercado, portanto, não acaba com o poder ou as amarras -- elas
permanecem lá, mas em formatos diferentes. E para uma troca ser
verdadeiramente voluntária, ela têm que ter igual poder para
aceitar, rejeitar, ou influenciar seus termos. Infelizmente, tais
condições são raramente se encontradas no mercado de trabalho ou
dentro do mercado capitalista em geral. Assim o argumento de Rothbard
de que o poder econômico não existe falha em reconhecer que os
ricos podem sobrepujar os pobres em recursos e que uma empresa
geralmente tem mais condição de recusar um contrato (com um
indivíduo, sindicato ou comunidade) do que vice-versa (e que o
impacto de tal uma recusa é tal que encorajará os demais envolvidos
a "chegar a um acordo" cedo ou tarde). E em tais
circunstâncias, os indivíduos formalmente livres "consentirão"
na escravidão para para sobreviver.
Como
Max Stirner mostrou na década de 1840, a livre competição "não
é 'livre', porque eu necessito de coisas para competir".
[The Ego and Its Own, pág. 262] Devido a esta desigualdade
básica de riqueza (de "coisas") nós achamos que "sob
o regime de competição os trabalhadores sempre caem nas mãos
dos possuidores. . . dos capitalistas, portanto. O trabalhadores não
pode perceber em sua labuta o quanto vale para seu patrão".
[Op. Cit., pág. 115]. É interessante notar que até mesmo
Stirner reconhece que o capitalismo resulta em exploração. E
poderíamos adicionar que aquele valor que o trabalhador não
"percebe" vai para as mãos dos capitalistas que o
investem em mais "coisas" o que consolida e aumenta a
vantagem deles dentro da "livre" competição.
Citando
Stephan L. Newman:
"Outro inquietante aspecto da recusa dos ultraliberais em reconhecer o poder do mercado é o fracasso deles em confrontar a tensão entre liberdade e autonomia. . . Trabalho assalariado sob o capitalismo é, naturalmente, formalmente trabalho livre. Ninguém é forçado a trabalhar sob a mira de um revolver. Porém, a circunstância econômica tem freqüentemente o efeito da força; compele aquele que é relativamente pobre a aceitar trabalho debaixo das condições ditadas pelos donos e gerentes. O trabalhador individual retém liberdade [isto é, liberdade negativa] mas perde autonomia [liberdade positiva]". [Liberalism at Wit's End, pp. 122-123]
Como
aparte, o contexto da citação de Stirner acima é "sob
o regime de
competição os trabalhadores sempre caem nas mãos dos possuidores,
aqueles que detém algum pedaço dos domínios estatais (e tudo o que
é de posse estatal pertence ao Estado e é apenas um feudo do
indivíduo), especialmente dinheiro e terra; dos capitalistas,
portanto. O trabalhador não pode perceber
em sua labuta o
quanto vale para seu patrão".
Alguém
poderia argumentar que falseamos Stirner truncando a citação, mas
achamos que tal reivindicação seria incorreta. A partir de seu
livro, é claro que Stirner está considerando um estado "mínimo"
("O
Estado é um - Estado do cidadão. . . Protege o homem. . . de forma
que as propriedades confiadas a ele pelo Estado são desfrutadas e
administradas conforme a constituição, quer dizer, leis, do
Estado".
O Estado "olha
com indiferença enquanto pessoas crescem pobres e outras ricas,
sereno diante desses altos e baixos. Como indivíduos
eles
são realmente iguais diante de sua face".
[Op.
Cit.,
pág. 115, pág. 252]). Como "os anarco"-capitalistas
consideram o sistema deles um sistema de leis e de direitos
(particularmente direito de propriedade), sentimos que isso propicia
a generalização dos comentários de Stirner do capitalismo como
tal
ao invés de um "estado mínimo" capitalista. Se nós
substituirmos "Estado" por "código de leis
liberais" você verá o que queremos dizer. Incluímos este
aparte antes que qualquer ultraliberal direitista reivindique que
estamos falseando o argumento de Stirner).
[Para
um maior aprofundamento talvez seja de interesse ver a crítica de
Jared
James sobre as posições "municipalistas" de Murray
Bookchin.]
Se
consideramos "igualdade perante a lei" é óbvio que isto
também tem limitações dentro uma sociedade (materialmente)
desigual. Brian Morris comenta o pensamento de Ayn Rand, "sob
o capitalismo. . . a política (do estado) e a economia (do
capitalismo) estão separados. . . Isso, naturalmente, é pura
ideologia, a justificação de Rand é que o Estado 'protege' a
propriedade privada, quer dizer, apóia e aprova o poder econômico
dos capitalistas através de meios coercitivos". [Ecology
& Anarchism, pág. 189]. O mesmo pode ser dito do
"anarco"-capitalismo e suas "agências de proteção"
e dos "códigos de leis liberais em geral". Se dentro
de uma sociedade poucos possuem todos os recursos e a maioria é
despossuída, então qualquer código de leis que protegem a
propriedade privada automaticamente fortalece a classe
proprietária. Os trabalhadores sempre estarão desencadeando
a força se agirem contra o código, assim "igualdade perante a
lei" reforça a desigualdade em poder e riqueza.
Isto
significa que um sistema de direitos de propriedade protege as
liberdades de algumas pessoas de tal forma que lhes dá um grau
inaceitável de poder em cima dos outros. E não basta apenas
reafirmar os direitos em questão, temos que avaliar a importância
relativa de vários tipos de liberdade e de outros valores que
estimamos.
A
direita liberal desconsidera a importância da igualdade porque
isso permite ao "anarco"-capitalismo ignorar muitas
restrições importantes à liberdade na sociedade. Além disso,
permite-lhes passar um pano em cima dos efeitos negativos do
sistema deles pintando um quadro irreal de uma sociedade capitalista
sem vastos extremos de riqueza e poder (na realidade, eles
freqüentemente interpretam a sociedade capitalista em termos de um
ideal -- isto é, produção artesanal -- que significa de fato
pré-capitalismo, cuja base social foi corroída pelo
desenvolvimento capitalista). A desigualdade amolda as decisões que
deveríamos tomar com as que tomamos:
"Há um 'incentivo' que sempre está disponível em condições de significativa desigualdade social, e que estimula o 'fraco' a fazer um contrato. Quando a desigualdade social prevalece, surgem questões que consideram a entrada voluntária em um contrato. . . Homens e mulheres. . . são agora juridicamente cidadãos livres e iguais, mas, em condições sociais desiguais, isso não pode ser normatizado pois alguns ou muitos contratos criam relações que incomodamente se parecem mais a um contrato de escravo". [Carole Pateman, The Sexual Contract, pág. 62]
Esta
confusão ideológica dos ultraliberais também pode ser
vista na oposição que fazem à taxação. Por um lado, eles
argumentam que taxação é uma coisa errada porque tira dinheiro
daquele que o "ganha" e dando-o ao pobre. Por outro lado,
assumem que o "mercado livre" capitalista é uma sociedade
mais igualitária! Se a taxação toma do rico e entrega ao pobre,
como é que ficaria o igualitarismo "anarco"-capitalista?
Tal mecanismo de equalização seria injusto (claro que alguém pode
reivindicar que todas as grandes riquezas são puramente resultado da
intervenção estatal que deturpa o "mercado livre", mas
isso coloca todas suas histórias esfarrapadas em uma posição
estranha). Assim, temos um problema, ou temos igualdade relativa ou
ela não é real. Ou temos riquezas, e assim poder de mercado, ou ela
não é real. É evidente que pela preferência de Rothbard, o
"anarco"-capitalismo não ficará sem seus milionários (ou
seja, afinal de contas, aparentemente não haveria nenhum
não-liberal objetando coisas como "organização,
hierarquia, trabalho assalariado, retirar fundos de ultraliberais milionários, e um partido ultraliberal"). E assim ficamos
ao sabor do poder do mercado e de uma vasta ausência de liberdade.
Assim,
para uma ideologia que aponta para o igualitarismo como uma "revolta
contra a natureza" é bem engraçado retratem o
"anarco"-capitalismo como uma sociedade de (relativa)
igualdade. Em outras palavras, a propaganda deles está baseada em
algo que nunca existiu, e nunca existirá, isto é, uma sociedade
capitalista igualitária.
F.3.2 E quanto ao apoio "anarco"-capitalista à caridade?
Cegos
ao impacto da desigualdade em termos de poder econômico e social, a
maioria dos ultraliberais argumentam que os muito
pobres poderiam depender da caridade no sistema deles. Mas tal
reconhecimento da existência da pobreza não reflete a consciência
da necessidade de igualdade ou do impacto da desigualdade nos acordos
feitos. O que ocorre é exatamente o contrário, apenas assumem a
existência de uma grande desigualdade -- ora, em uma sociedade de
relativa igualdade, pobreza não existiria, nem mesmo a caridade
seria necessária.
Ignorando
o fato que a ideologia deles dificilmente promoverá uma perspectiva
caridosa, vamos considerar quatro pontos. Primeiro, a caridade não
será suficiente para contrabalançar a existência e o impacto de
vastas desigualdades de riqueza (portanto, de poder). Segundo, é
provável que tal caridade se interesse em "melhorar" a
qualidade moral dos pobres e assim, divida-os em pobres "merecedores"
(isto é, obedientes) e pobres "indignos" (isto é,
rebeldes). A caridade estará disponível aos primeiros, aos que
aceitam que outrém coloque o nariz em suas vidas. Deste modo, a
caridade poderia se tornar outra ferramenta do poder econômico e
social, veja este extrato de The Soul of Man Under Socialism
escrito em 1891 por Oscar Wilde:
"Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quanto ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.
"Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O progresso é uma consequência da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve -- o que para muitos é uma forma de roubo.
"Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza anterior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos. devemos ter pena deles mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma de atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concordar com a sua continuidade.
"Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas. O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoas intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento nele. É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura na América não foi uma consequência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares, que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema. Foram eles, sem dúvida, que começaram tudo. É curioso observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação. Para o pensador, o fato mais trágico da Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendrée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo".
Terceiro,
é improvável que a caridade possa substituir todos os gastos
sociais administrados pelo estado -- as doações caridosas
representariam dez vezes mais
esses gastos (e tendo em vista os ultraliberais serem
contra as taxas estipuladas pelo governo para ajudar os pobres,
parece improvável que doariam tal quantia). E, por último, a
caridade é um reconhecimento implícito de que, sob o capitalismo,
ninguém tem o direito de viver -- é um privilégio que você tem
que pagar. A opção da caridade é por si só abjeta. E,
evidentemente, em um sistema projetado para afiançar a vida e a
liberdade de cada pessoa, como pode ser julgado aceitável deixar a
vida e a proteção até mesmo de uma única pessoa aos caprichos
caridosos dos outros? (Talvez argumentem que as pessoas tem direito à
vida, mas não o direito de ser um parasita. Isto ignora o fato de
algumas pessoas não
poderem trabalhar -- os bebês e algumas pessoas deficientes -- e
que, em uma economia capitalista, muitas pessoas nem sempre encontram
trabalho. É este reconhecimento de que os bebês não podem
trabalhar que incita muitos ultraliberais a
transformá-los em propriedade? Claro que gente rica que nunca
realizou trabalho algum em suas vidas nunca é classificada como
parasitas, até mesmo se herdassem todo seu dinheiro). Diante de tudo
isso não foram por acaso as palavras de Proudhon:
"Até mesmo as instituições caridosas servem maravilhosamente os fins daqueles que detém autoridade.
"Caridade é a mais forte cadeia pela qual o privilegiado e o Governo, sob a desculpa da proteção, sujeitam as classes mais baixas. Com caridade, mais adocicada aos corações dos homens, mais inteligível ao homem pobre do que as confusas leis de Economia política, pode-se ministrar com justiça." [The General Idea of the Revolution, pp. 69-70]
Conforme
percebemos, o (incidental) reconhecimento da pobreza por parte dos ultraliberais não significa o reconhecimento da
existência do poder de mercado. Eles nunca perguntam para eles
mesmos como pode alguém chegar ao ponto de ter que vender seu
trabalho (e sua liberdade) para poder sobreviver.
Traduzido por Projeto Periferia
"An Anarchist FAQ" é um projeto escrito por ativistas e pensadores anarquista do mundo todo. É a maior enciclopédia sobre anarquismo já escrito, onde se explora teorias, correntes, história, etc. da tradição política libertária.
Veja também:
8 comentários:
Igualdade é delírio socialistóide de estatista totalitário.
Só existe uma "igualdade" que importa: todos possuem os mesmos direitos naturais de vida, liberdade, e propriedade. SÓ ISSO PORRA
Se você ler o texto verá que o que você disse não faz o menor sentido.
Uma correção: no texto está "proteje", o correto é "protege".
Obrigado pela tradução de um texto tão longo, mas é uma boa ideia passar tudo por um corretor ortográfico (como o do Word mesmo) antes de publicar ;)
Desculpe, mais eu não vi nenhum ataque sério ao anarco-captalismo aí
O texto só diz que nem todas as relações econômicas são igualitárias
quando se você levar em conta a reputação de uma empresa coloca todos em uma igualdade nos riscos
Sua argumentação de que os proprietários seriam beneficiados nesse regime é errada, pois o principio basico do anarco-captalismo é a propriedade do proprio corpo, e isso é muito mais defendido por eles do que a propriedade de terra em si
Os exemplos que você deu são classicos de empresas amparadas pelo estado, uma mercado bastante competitivo sempre teria uma empresa substituta pra prover seus serviços melhor que a anterior
Fabrício
A questão do domínio do próprio corpo é uma máxima anarquista do qual chamamos de auto-governo. Não existe problema nisso pois o anarquismo abraça este conceito. No entanto, acreditamos no igualitarismo enquanto esfera política e isso não tem muito a ver com a questão do auto-governo sobre o próprio corpo. O texto diz isso claramente.
A reputação de uma empresa é uma consequência, algo externo devido as instituições fundamentadas na sociedade. Então mais do que prestar atenção nisso, os anarquistas prestam atenção no que vem anterior a isso.
Então a igualdade do risco, dentro de um contexto "anarco"-capitalista, é indiferente visto de um ponto de vista anarquista pois essa igualdade é baseada na exploração da mão de obra assalariada. O capitalismo, seja ele amparado pelo estado ou livre do mesmo, possui as mesmas bases moduladoras: dependência da existência de divisão de classes. Ou seja, um grupo de proprietários comandando o grupo de proletários.
Então não importa se haverá ou não competição, se haverá ou não igualdade de riscos pois a fundação do capitalismo é o mesmo: estruturas que limitam o auto-governo de pessoas serem donas do próprio trabalho. Desse modo, os "anarco"-capitalistas defendem as mesmas estruturas de organização econômica e de produção que sempre existiu, com a diferença de que não haveria o estado pra intervir. E isso é completamente contrário às ideias anarquistas.
No meu entendimento sobre a evolução do livre mercado, a classe assalariada tende a sumir e dar espaço para uma classe de empreendedores individuais, sendo cada pessoa uma pequena entidade jurídica e com isso acabando com a ideia de exploração do Empresário sobre a classe assalariada. Precisamos dar as bases para que qualquer individuo tenha a oportunidade de criar o próprio negocio, algo que com a evolução tecnológica se torna cada vez mais fácil. O que os anarco-capitalista tentam sempre expor não é apenas essa visão biologica de que todos os individuos são diferentes e sim que cada individuo gera valor de forma diferente para sociedade e com isso vão ter retornos diferentes, em uma sociedade igualitaria não há incentivo para a inovação e produção e consequentemente criação de riqueza, nenhuma sociedade é ou ja foi igualitaria e acredito que isso nunca haverá, o que precisamos buscar é uma sociedade onde haja um nivel minimo aceitavel para qualquer individuo e com isso todos os individuos terem a oportunidade de gerar cada vez mais valor para a sociedade, algo que é claro (tambem para os anarco-capitalistas) é que individuos miseraveis, que precisam se alimentar ou comprar um remedio não apresentam bases necessarias para a liberdade facilitando um modelo de exploração.
KKKKKKKKKKK Esse Rodrigo Pitombo só pode está de zoação. Ele deve viver num mundo onde ele acha que as matérias primas brotam dentro da lojinha da esquina e na qual a grande quantidade de produtos diferentes são confeccionados à mão. Esses anarcoimbecilistas nunca devem ter trabalhado na vida deles, trabalho de verdade e não esses empreguinhos burocráticos de escritórios.
Só podem está de gozação.
KKKKK Esse Marcelo... Não consegue mesmo dialogar Rodrigo Pitombo colocou as ideias dele de forma educada... se vc não tem argumento não precisa ofender ninguém, porque na verdade que sai por idiota é vc...
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