quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Um homem de esquerda livre



Por Maria da Paz Trefaut para o site Valor. Entrevista publicada em 5 de Outubro de 2012.

Será que, desta vez, ele retorna ao Brasil? A dúvida alimenta a conversa de quem conhece o filósofo francês Michel Onfray e já foi surpreendido por suas desistências de última hora. Foram várias. A mais recente ocorreu há três anos, quando ele viria falar em Porto Alegre, São Paulo e no Rio. Ao Valor Onfray confirma que estará, sim, na capital paulista, na quarta-feira, para participar do seminário Fronteiras do Pensamento

Será sua segunda vez no país e o encontro promete, já que ele vai falar sobre ateísmo, Freud e psicanálise, temas de seu livro mais polêmico: "Le Crépuscule d'un Idole, l'Affabulation Freudienne" (O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), sem tradução prevista por aqui. Lançado em 2010, o trabalho é um violento ataque à psicanálise e ficou meses na lista dos mais vendidos, rendendo muita falação. A crítica mais notória partiu da filósofa Elisabeth Roudinesco, que acusou a obra de "populista, abjeta e delirante" e seu autor de "guru que escreve demais e sem refletir".

Conferencista do Fronteiras do Pensamento São Paulo e Santa Catarina, o filósofo francês Michel Onfray veio ao Brasil para falar sobre ateísmo, Freud e psicanálise, temas de seu livro mais polêmico: Le Crépuscule d'un Idole, l'Affabulation Freudienne (O crepúsculo de um ídolo, a fábula freudiana), sem tradução prevista por aqui. Lançado em 2010, o trabalho é uma crítica radical à psicanálise e ficou meses na lista dos mais vendidos. Confira, abaixo, a entrevista de Onfray à revista Valor Econômico.

Professor secundário durante anos, Onfray deixou o ensino público há uma década para fundar, ao lado de 20 amigos, a Universidade Popular de Caen, na região francesa da Normandia. Suas aulas, abertas e gratuitas, são depois veiculadas pela rádio France Culture e podem ser acompanhadas também pela internet. "Larguei meu trabalho de funcionário público porque tinha livros a escrever, conferências a fazer e queria tornar a filosofia popular, como nos incitou a fazer Diderot [1713-1784]", afirma.

Aos 53 anos, com cerca de 60 livros publicados, Onfray faz parte do grupo de filósofos franceses mais midiáticos, conhecidos por popularizar a filosofia e traduzidos em vários países. No Brasil, sua obra vem sendo lançada pela editora WMF Martins Fontes - o mais recente é Os Ultras das Luzes - Contra-História da Filosofia 4. Se os bate-bocas e críticas o acompanham por toda parte, ele também faz questão de responder com a mesma virulência: "Sinceramente, estou me lixando para o que os intelectuais pensam do meu trabalho".

Valor: Seus livros falam de uma temática contemporânea, que contempla da alimentação à estética. O senhor já escreveu sobre bioética, arte, política, história da filosofia e erotismo. Na sua opinião, quais são os temas mais inquietantes para as pessoas nos dias de hoje?

Michel Onfray: Tudo se resume a uma coisa só: como viver no mundo sem ter uma bússola? Deus está morto, Marx também. O capitalismo se comporta muito bem, o niilismo triunfa e a maioria das pessoas busca uma ética e uma política de substituição. Depois de 1989 e a queda do Muro de Berlim, eu proponho alternativas: o hedonismo em matéria de moral e o anarquismo em termos políticos.

Valor: Qual é a melhor maneira de definir o senhor politicamente?

Onfray: Sou um socialista libertário, um leitor apaixonado de Proudhon, o defensor de uma esquerda libertária, como Camus. Detesto Marx e os marxistas. No século XX, o software marxista, repercutido via Sartre, Althusser, Zizek, Badiou, continuou fascinado pelo terror de 1793, por Robespierre e sua guilhotina, por Saint-Just, sedento de sangue, a pretexto da "virtude". Eles aí encontram desculpas para o Gulag [arquipélago Gulag, conjunto de campos de trabalho forçado na Sibéria, durante a ex-União Soviética] argumentando que os Estados Unidos são um país de alguma forma totalitário. Detesto tanto o liberalismo e a direita quanto essa esquerda que se protege à sombra dos miradores. Minha esquerda é libertária. Ela se alimenta de anarco-sindicalismo, de anarquismo municipal, de pós-anarquismo. Se você quer me definir, sou um homem de esquerda livre. Ou um homem livre, de esquerda.

Valor: Com frequência seus textos falam sobre sua vida, sobre a pobreza e a miséria afetiva da infância. Isso ainda o incomoda? Como tudo isso determinou seu trabalho?

Onfray: Nietzsche revolucionou a filosofia ao escrever que ela não era nada mais do que a autobiografia, a confissão de seu autor. A filosofia institucional passa, evidentemente, essa verdade sob silêncio e persiste a declamar que o filósofo é um cérebro sem corpo, que alimenta um comércio desinteressado com ideias puras! Eu, de minha parte, mostro como a ideia genial de Nietzsche é uma verdade epistemológica, tomando como exemplo o que conheço melhor: minha vida.

Valor: Mas a filosofia pode curar ou apenas ajuda a suportar a angústia?

Onfray: As duas coisas. Tudo depende da filosofia. Há filosofias diversas e múltiplas. Assim como há filósofos do conhecimento, da descrição pura, da estética etc. Alguns pensadores ajudam a viver, a bem viver, a melhor viver. Depois de 60 livros eu tento inscrever meu trabalho nessa linhagem. Não podemos viver de acordo com a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, ou o Ser e Tempo, de Heidegger. Mas podemos viver conforme as Cartas a Lucilius, de Sêneca, os Ensaios, de Montaigne, ou Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche.

Valor: Um dos mais conhecidos neurocientistas brasileiros, Miguel Nicolelis, diz que atualmente a humanidade é dominada por três esquizofrênicos que ouviam vozes: Jesus Cristo, Maomé e Abraão. O que pensa a esse respeito?

Onfray: 
Não conheço o trabalho desse homem valioso, mas peço ao céu (que é vazio de deuses...) para que ele fale francês (é uma pena que eu não fale sua bela língua). Assim eu poderia convidá-lo para me acompanhar ao restaurante, onde festejaremos essa comunhão de espírito.


Valor: O senhor fundou a Universidade Popular de Caen para dar aulas abertas a todos e, depois, a Universidade Popular do Gosto, em Argentan. No que ela consiste e que resultados obteve?

Onfray: Eu propus celebrar os cinco sentidos num lugar que é um "jardim" de reinserção social. Sob uma tenda, organizo jornadas consagradas a escritores, filósofos e nós celebramos com conferências, concertos, demonstrações culinárias e refeições festivas. Os cinco sentidos são mobilizados para construir uma conexão social hedonista. A última sessão consagrada a Camus [tema do mais recente livro de Onfray: A ordem libertária - a vida filosófica de Albert Camus], juntou 600 pessoas e nós servimos 400 refeições em Argentan, cidade onde nasci, onde moro e onde organizo as jornadas.

Valor: Como analisa a moda da gastronomia que corre o mundo nos últimos anos? Será mesmo possível democratizá-la?

Onfray: Existe, provavelmente, uma moda que ilustra o triunfo do narcisismo contemporâneo. Ela parte da suposição de que nós podemos nos dar prazer, celebrar nosso corpo e que conseguimos nos bastar a nós mesmos. Mas a gastronomia pode também ser popular, celebrar o convívio, ser festiva, alegre e compartilhada. Não consigo imaginar a gastronomia como uma ocasião de nos separarmos uns dos outros num exercício narcísico e ególatra - vejo-a como um momento de festa generalizada. A mesa é uma metáfora política: diz-me o que comes e eu te direi quem és... Charles Fourier, um socialista utópico do século XIX, é um modelo para mim.

Valor: Por que o senhor construiu sua carreira fora de Paris?

Onfray:
 Paris é o lugar de todos os compromissos, de todos os poderes, e, portanto, o lugar de todas as infâmias. Os "Onfray" são descendentes dos vikings que chegaram à Normandia em meados do século X. Meus ancestrais estão nessa região da França há um milênio. Eu nasci, vivi, escrevi meus livros e serei enterrado em Argentan. Não há nada em Paris que me faça participar de seus bacanais de paixões tristes.


Valor: Como avalia a crise europeia? Que futuro espera o continente?

Onfray: A Europa morreu desde que os burocratas assim tentaram, depois da Segunda Guerra. Já a Primeira Guerra a tinha sangrado em vão. A Europa nasceu com a conversão do imperador Constantino ao cristianismo, no começo do século IV. E começou seu declínio quando Luis XVI foi decapitado, durante o Terror de 1793. Ela decaiu mais ainda, depois. Já perdeu seu lugar no concerto das civilizações planetárias e está sendo chamada a integrar o cemitério de civilizações defuntas... O barco segue seu curso, tomemos champanhe, mas sabendo que ele vai a pique. A vocês, o futuro!

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