quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Individualistas anárquicos



Por Luis Diego Fernandez

Desde os últimos meses de 2013 e antecipando o que vem no primeiro semestre de 2014 [N. T.: artigo publicado em Janeiro de 2014] parece se formar um panorama em relação a novidades editoriais sobre livros que se referem, de alguma forma ou outra, a tradição do chamado anarquismo individualista, a saber: a edição pela primeira vez em espanhol de Formas de vida en común sin estado ni autoridad e Sexualismo revolucionario (Editorial Innisfree) textos principais de Émile Armand, quase de forma simultânea com a aparição de "Contra los pastores, contra los Rebaños", de Albert Libertad (Pepitas de Calabaza), difusor da ideia anarco-individualista com o citado Armand. Na mesma direção podemos adicionar a raridade da primeira revista impressa e digital sobre anarquismo individualista que será lançada em Março, com colaboradores espanhóis e latino americanos, assim como as filas das numerosas re-edições da obra de Henry David Thoreau: "Walden ou a vida nos bosques" (Errata Naturae), Desobediência Civil (Editorial Innisfree) ou o primeiro volume de Diario (Capitán Swing). A persistência da semente do anarquismo individualista se deve também ao êxito editorial contínuo de Michel Onfray que, em Filosofar como un perro (Capital Intelectual), seu recente livro, mostra a ideia de pós-anarquismo, atualizando ao último de Foucault, assim como em Deleuze e Guattari. E não devemos esquecer que Christian Ferrer publicará um reescrito de seu inescapável ensaio libertário intitulado Cabezas de tormenta (2006) pelo selo Pepitas de Calabaza durante a primeira metade do ano.

O que responde esta avalanche editorial de inéditos, clássicos, reedições, revistas ou ideias simplesmente que transitam a frondosa e singular árvore do anarco-individualismo? A diminuição do anarco-comunismo ou do gesto coletivista do anarquismo canta sua obsolência? Certamente, em grande medida o mesmo que seu dogmatismo, teimosia e exigência extrema de realizar o paraíso na terra. Os anarquistas individualistas, nesse sentido, foram os irmãos desobedientes, com sua semente ácrata comum (crítica à autoridade, ao poder centralizado do estado, às formas de dominação nas diferentes esferas), mas reivindicaram, antes de tudo, a transformação do indivíduo e suas práticas morais, uma visão excêntrica e estetizante, um maior dandismo moral e, em alguns casos, uma dissidência a respeito à propriedade e ao mercado (de onde se defenderá, como em Proudhon, pela posse por parte dos trabalhadores a respeito do valor de seu trabalho).

Introduzindo um pouco de história, não custa sempre lembrar que o termo grego an-archos revela o sem fundamento, sem poder, sem essência, sem autoridade, mas não a desordem como normalmente se pensa de modo súbito ou precipitado. O que não está, é a arché, a raiz. Pode existir a ordem sem a autoridade? Talvez possa-se responder com outra pergunta que Etienne de la Boétie, amigo de Montaigne, formulou em seu Tratado da servidão voluntária: por que queremos ser governados? O que nos concede para querer que nos governem? Por que servimos? Uma pergunta tão anômala quanto radical, tão extrema quanto certeira e irrecorrível, que realizou no século dezesseis aos quinze anos de idade.

A partir da pergunta pelo poder e autoridade (ou sua falta) é trafegar pela tradição anarquista. Linhagem antiga que remonta a figuras ou comunidades como os essênios, os anabaptistas, Lao Tzé, ou Diógenes. Já dentro do século dezenove é geralmente dito que duas grandes correntes são as vigas do anarquismo (do qual também emergem o liberalismo e o marxismo). Essa dupla sessão, esses dois blocos são formas igualmente lícitas para compreender a via libertária: por um lado, o anarco-comunismo, cujos pensadores modelares foram Piotr Kropotkin e Mikhail Bakunin e, no outro sentido, o anarco-individualismo, no qual pode atribuir filósofos como Max Stirner, Henry David Thoreau ou Friedrich Nietzsche. Um caso singular como o de Pierre-Joseph Proudhon pode ser contestado por ambas linhagens, porém o certo é que o mutualismo propagado pelo pensador francês, na verdade, se assemelhava a uma forma de anarco-individualismo. Inclinação que podemos ampliar a outros representantes de marca saxônica como Herbert Spencer, Benjamin Tucker ou Lysander Spooner. O anarquismo é um, porém suas variações são tão abundantes e até contraditórias como as cores do arco-íris: anarca-feminismo (Emma Goldman), anarco-sindicalismo (Errico Malatesta, Noam Chomsky), eco-anarquismo (Murray Bookchin, os ambientalistas), anarco-capitalismo (Murray Rothbard), anarco-primitivismo (John Zerzan, Unabomber), anarco-queer (Judith Butler, Beatriz Preciado) e é possível seguir com algumas distinções mais ou menos sofisticadas. No caso do ramo anarco-individualista que parece florescer já faz um tempo, é possível verificá-lo já em 1793, nas próprias ideias de William Godwin, um dos pais fundadores da filosofia anarquista. Suas características parecem seguir válidas: racionalismo, anti-estatismo, auto-didatismo, comunitarismo, liberdade sexual são algumas delas. As figuras possíveis destas variações sempre foram aquelas que preconizaram que o indivíduo em primeiro lugar (como testemunho e exibição da vida emancipada) e logo o social (o grupo, o comunitário), ali teremos desenhos conceituais como a “associação de egoístas” de Max Stirner e o mutualismo de Proudhon, diferennte do federalismo de Bakunin e do comunismo anárquico de Kropotkin (“tudo é de todos”).

O anarquismo individualista que vemos nos textos revisados de pensadores como Emile Armand e Albert Libertad, assim como da grande tradição estadunidense, o chamado “anarquismo bostoniano” de Thoreau, Emerson e J. Warren, defendeu sempre a auto-organização sem hierarquias, a crítica ao trabalho assalariado, aos monopólios e oligopólios (produto de sua aliança com o Estado que os favorece) porém nunca a crítica à propriedade por si mesma nem ao mercado livre entre trabalhadores. Demolição dos privilégios, porém louvor da “posse”, o anarquismo individualista sempre teve um atrito amistoso com o liberalismo, recordemos que Proudhon e Bastiat se sentaram juntos (na esquerda) na assembléia legislativa após a Revolução Francesa. Por esse olhar tampouco temos que cair na redução liberal: no anarco-individualismo não existe a submissão ao aparato jurídico clássico liberal, a tradição da norma, nem um certo puritanismo (dito por Max Werber). Sim, existirá a linha do chamado anarco-capitalismo de modo impreciso ou libertarismo de modo eficaz e claro, que se assenta de modo mais firme desde a década de setenta nos Estados Unidos, fazendo pouco caso do conceito de propriedade lockeana assim como do jusnaturalismo, que se vê em temas de filósofos como Robert Nozick e Murray Rothbard. O libertarismo atual, como emergente deste entrelaçamento entre anarquismo e liberalismo, reivindica para si a tradição anarco-individualista no século vinte vista através do prisma da Escola Austríaca de Economia (F. A. Hayek e Ludwig von Mises) e, de certa forma, reivindica o conceito de liberdade negativa: nem interferência e nem obstrução da ação. Hoje a versão possível do anarquismo individualista vem precisamente pelo certo auge do libertarismo (sua expressão possível nestes tempos) produto das críticas aos partidos tradicionais, da representação ou das novas formas de vida.

O âmago do anarquismo individualista revisto é seu aporte hedonista, seu direito ao prazer, tal como diz Christian Ferrer em Cabezas de tormenta: “A eugenia se cruza neste ponto com a crítica ao matrimônio burguês hipócrita e com a aplicação do direito do próprio corpo. O discurso anarquista sobre a sexualidade é complexo, porque nele se cruza uma analítica sexual de índole científica, uma preocupação social de raiz médico-higienista, e ideais racionais fomentadas pelo romantismo, que não exclui uma dose de voluptuosa erotização discursiva, na que se destacam os chamados 'armandistas', seguidores das doutrinas individualistas de E. Armand. Os armandistas ou os leitores da brasileira Maria Lacerda de Moura difundiram o direito ao prazer, como direito 'natural' dos seres humanos”.

De modo que o hedonismo libertário sempre encontrou na tradição anarco-individualista um território mais fértil e amigável que no ascetismo monástico anarco-comunista. O próprio Michel Onfray, individualista, é um fiel confidente do louvor do vinho, da gastronomia e do erotismo. Por outro lado, a indústria pornográfica é terreno quase exclusivamente habitado pelos libertarians, como chamam nos Estados Unidos os cultuadores do libertarismo. De modo que a rigidez moral de certas tradições ácratas (crítica ao tabaco, álcool e drogas) aqui tem sido amortecidas com o libertinismo, porém em ambos os casos compactuam a mesma lógica amorosa, pacifista e em muitos casos ambientalista, em referência ao apoio de causas como o naturismo ou o veganismo. Nesse sentido, também deve ser marcado que o anarco-individualismo sempre tem sido feminista, a recordar uma grande expoente como Voltairine de Cleyre. A educação da mente livre será crucial para empoderar as mulheres na igualdade total entre gêneros.

O vigor do anarquismo individualista encontra sua semente nestes dias, precisamente pela sua heterodoxia, pela sua ruptura com ímpio dos cânones e pela vontade livre de falar através de condutas visíveis e vivas. O efêmero do voluntarismo comunitário do anarquismo individualista não é seu ponto fraco, mas ao contrário, seu forte, assim diz Armand: “Do ponto de vista individualista do anarquismo, parece difícil mostrar-se hostil a seres humanos que, contando somente com sua vitalidade individual tentando realizar todas ou parte de suas aspirações. Para não crer no valor demonstrativo das 'tentativas de vida em comum', os anarquistas individualista fazem tal propaganda em favor das 'associações voluntárias', que encontram muitas dificuldades para renegar dos lugares em que suas teses são praticadas com menos restrições que em qualquer outro local.”

Toda mudança social ocorre primeiro pela transformação do indivíduo, ali bradam essas vozes resgatadas. Não é negligenciável esse retorno em algum sentido, a singularidade adiada lamenta pela sua vontade para protestar e celebração de amor à vida.


Traduzido por Rodrigo Viana. Para ler o artigo original clique aqui.


Luis Diego Fernández possui formação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade de Buenos Aires, é ensaísta e leciona na Universidad Di Tella. Para acessar o seu blog clique aqui.

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